“Mulher e negra”. Foi assim que muitos veículos de comunicação pelo Brasil afora iniciaram suas manchetes para informar que a vacinação contra a Covid-19 tinha começado no país. As duas palavras, uma colocada ao lado da outra, surtiram um efeito que levou muitas pessoas a ignorarem o fato do início da imunização, algo tão esperado nos últimos tempos, para começar a gritaria: Por que mulher e negra? Será que se fosse uma enfermeira de cor branca a notícia seria: mulher e branca?
A esse tipo de reação faltou compreensão, porque, ao se destacar que a primeira pessoa vacinada no Brasil era uma mulher e negra, umas das simbologias possíveis seria justamente ressaltar que nossa nação é, majoritariamente, composta por mulheres e negros. A população brasileira é formada por 48,2% de homens e 51,8% de mulheres. Além disso, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua do IBGE, 56,10% das pessoas se declaram negras no Brasil. Dos 209,2 milhões de habitantes do país, 19,2 milhões se assumem como pretos, enquanto 89,7 milhões se declaram pardos. Os negros, que o IBGE conceitua como a soma de pretos e pardos, são, portanto, a maioria da população.
Uma outra leitura também possível é de que a mortalidade pelo coronavírus é maior entre a população negra, o que justificaria o destaque para a palavra “negra” nos títulos das reportagens. Ao longo da pandemia, pesquisas, inclusive divulgadas pelo Ministério da Saúde, apontaram altas taxas de óbitos por Covid-19 entre os negros. Incidência que se explicaria pela realidade, visto que a população negra reside, em média, em moradias precárias e vive em bairros com menos infraestrutura tanto de saneamento quanto de acesso a serviços. A consequência disso é a maior proliferação do vírus nas periferias, que é onde há mais negros. Nessa lógica, mais negros irão adoecer, em piores condições, com mais dificuldade de acessar serviços, ficando com um quadro da doença mais grave e chegando aos hospitais em condições mais precárias de atendimento.
Nesse contexto, merece relevo o dado da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade, que mostra que 67% dos brasileiros que dependem exclusivamente do SUS (Sistema Único de Saúde) são negros, e estes também são a maioria dos pacientes com diabetes, tuberculose, hipertensão e doenças renais crônicas no país – fatores considerados agravantes para o desenvolvimento de quadros mais gravosos da Covid-19.
Portanto, o uso dos termos “mulher” e “negra” nas manchetes que se espalharam pelo Brasil tem a sua razão. Da mesma forma, a utilização de “enfermeira” ou de “técnica em enfermagem” para qualificar as demais pessoas que estão recebendo a primeira dose nos estados, o que também tem aparecido bastante nas notícias, tem a sua justificativa, uma vez que os profissionais de saúde estão entre os mais afetados. Conforme o Ministério da Saúde, entre as mortes em decorrência da Covid-19, as categorias mais vitimadas foram técnicos e auxiliares de enfermagem (38,5%), médicos (21,7%) e enfermeiros (15,9%). Já, entre os casos de infecção, os mais atingidos foram técnicos e auxiliares de enfermagem (34,4%), enfermeiros (14,5%), médicos (10,7%) e agentes comunitários de saúde (4,9%).
Então, pelo que se percebe por meio das pesquisas e percentuais, os termos empregados pela mídia profissional têm sua motivação, o que já não se pode considerar sobre a grita de quem não gostou da forma como muitas manchetes foram divulgadas. Para encerrar, vale mencionar que as mulheres estão no front da guerra contra o Sars-Cov-2, como a técnica em enfermagem, Denise Maria Rocha de Freitas, de 43 anos. Ela, que é servidora do Hospital Universitário da UFJF há 12 anos, foi a primeira pessoa, mulher e negra, a receber a vacina em Juiz de Fora. Na foto que vai ficar eternizada, ela nos brinda com um olhar cheio de esperança!!!