Assisti ao esperado filme “Marighella”. Em mais de duas horas de duração, o roteiro, que narra a história de um passado não tão distante, nos fornece elementos para pensar o Brasil de agora. Porque esse país do nosso presente também nos concede material o suficiente para que a vida de Marighella mostrada no cinema seja considerada atual.
A primeira obra do ator Wagner Moura como diretor rememora o histórico de violência do Estado brasileiro contra a população negra. O policial Lúcio, personagem de Bruno Gagliasso, deixa evidente quem são suas vítimas ao dizer: “- Se mato preto, mato vermelho”. Tal afirmativa, se fosse desprendida da tela grande, seria uma das motivações para explicar dados do anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, que destacou, em 2020, que os negros (78,9% dos mortos) foram a maioria das vítimas na mão do Estado.
A própria escolha do cantor Seu Jorge para interpretar o protagonista foi alvo de críticas, já que Carlos Marighella tinha a pele mais clara do que a do cantor. Mas, para o cineasta, a polêmica pouco o atingiu. Ao falar sobre o tema, Moura disse que não se importava se seu Marighella tivesse a pele mais escura do que o verdadeiro. Para ele, pior seria fazer o que é comum no Brasil, onde nossa história é marcada pelo embranquecimento das pessoas, como é o caso que ganhou novo fôlego, nos últimos anos, envolvendo o escritor negro Machado de Assis, por vezes representado como um homem branco.
Falar de “Marighella”, o filme, também é pensar na pessoa que foi Carlos Marighella, algo que o diretor do longa-metragem soube captar e mostrar, pois o homem Marighella, declarado inimigo número 1 do Brasil, era a síntese do humano. Se por um lado era furioso, que se defendia brigando como um leão, o que casava bem com sua luta na tentativa de libertar a nação de uma ditadura, por outro, era o poeta e professor. Um homem que fazia piada com a própria sorte e se mostrava doce com a mulher e pai protetor.
Segundo o jornalista Mário Magalhães, autor do livro “Marighella: o guerrilheiro que incendiou o mundo”, que serviu de inspiração para o filme, um dos aspectos mais fascinantes de Marighella é que ele não era a caricatura de militante político cuja vida era estreitada pelo cotidiano da militância. Ele era um cara que gostava de carnaval, de música e poesia, ou seja, um homem comum, um brasileiro entre tantos, que também sonhava com um país melhor.
Talvez seja aí o ponto em que a obra se aproxime ainda mais dos dias atuais, algo que pode ser a explicação para que o longa tenha se tornado o filme brasileiro mais visto na pandemia, levando quase cem mil pessoas aos cinemas na primeira semana de exibição. A gente se identifica com o ser humano da figura verdadeira refletida no personagem retratado nas telas.
Marighella é o retrato do brasileiro atual, de alguém que tenta resistir, apesar das mazelas, que sonha, mesmo que a realidade seja um pesadelo. Wagner Moura, ao falar acerca de seu filme e de sua importância para o Brasil atual, afirmou que o que estamos vivendo agora seja “provavelmente o pior momento da nossa história depois da ditadura”. Ele pode estar certo, e o que nos resta é resistir, sem jamais perder nossa humanidade.