Às vezes, gosto de trazer aqui para este espaço temas relacionados às leituras que faço ao longo do ano. Atualmente, na mesinha que fica do lado da minha cama, há o livro “Solitária”, da escritora e jornalista Eliana Alves Cruz. Não é a primeira obra dela que chega às minhas mãos e confesso que, apesar de conhecer o universo em que a autora gosta de se mover, tive uma bela surpresa ao iniciar essa nova leitura. Com grande sutileza, sem nada de panfletário e com uma prosa muito fluida, o livro aborda uma temática contemporânea e inevitável.
Por meio das personagens Eunice e Mabel, mãe e filha, a narrativa chama nossa atenção para a questão do trabalho doméstico e para o quanto de herança do período escravocrata brasileiro resta nesse tipo de serviço, geralmente, prestado por mulheres negras, desde as primeiras décadas do século XX.
Mabel, criança ainda, tinha que ser levada por Eunice para a casa dos patrões, no luxuoso edifício Golden Plate. Sua mãe morava no emprego e desempenhava seu trabalho nas 24 horas do dia. A filha, quando nova, não entendia o que tudo aquilo significava, mas, à medida que foi crescendo, tomou consciência do que representava a vida que sua mãe levava para manter o conforto da família rica que a empregava. Se o trabalho doméstico sem hora para terminar e realizado por anos a fio tinha roubado de Eunice todos os sonhos; para Mabel, aquela vivência de mãe e filha no quartinho dos fundos do apartamento também tinha suas imposições.
Aliás, o “quarto de empregada”, quase que também um personagem do livro, tem muito a nos dizer. Como se sua arquitetura falasse, deixando explícito o Brasil que se forjou na base do trabalho escravo. O romance de Eliana Alves Cruz apresenta esse cômodo, quase já extinto nos apartamentos modernos, como revelador de uma forma de apartheid, entre tantas outras que foram naturalizadas e algumas que ainda são. Práticas existentes que, de tão banais, deixam de ser vistas, mas que não podem ser desprezadas como indícios da nossa grande desigualdade social.
Se antes não tínhamos essa consciência, parece que, de uns tempos para cá, começamos a abrir os olhos. Isso se deve muito à produção artística atual, como a literatura contemporânea, na qual se encaixa o livro da escritora, que coloca o foco desse debate na questão racial. Não vou oferecer mais detalhes sobre o romance, porque não desejo ser inconveniente, correndo o risco de dar “spoiler”, estragando a surpresa de quem se sentir entusiasmado por fazer sua leitura. Mas vou deixar aqui a frase que abre a narrativa: “Mãe…a senhora precisa se libertar dessas pessoas”. Eu reforço: Sim, precisamos.