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Tinha uma dona no meio do caminho

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Tem uma dona que costumo encontrar no meu caminho para o trabalho, toda manhã. Nunca ouvi sua voz, não sei o que faz, onde mora, nem o que pensa. Passamos uma ao lado da outra e trocamos sorrisos cordiais, como se disséssemos, “Bom dia!”, ato que dispensa que pronunciemos, de fato, tais palavras.

Tenho pensado muito sobre o poder delas, as palavras. Sobre o que está além do que se lê e ouve. Os últimos dias têm sido especialmente difíceis para mim neste quesito. Nas semanas que se passaram, ouvi e li , com certa frequência e espanto, coisas como: “bandido bom é bandido morto”, “andando na rua sozinha a essa hora, ‘tava pedindo'”, “absurdo usar camisa 100% branco e ser taxado de racista” e, ainda, a belíssima “se o Brasil não melhorar com as eleições, quem sabe os militares não tomam o poder e põem ordem no país”. E isso é apenas um ‘pocket show’ do grande festival de “verdades” que quisera eu estar inventando, e vem me deixando estarrecida.

Antes de tudo, porque essas ideias refletem o quanto vários preconceitos e equívocos estão arraigados cronicamente na cabeça de tantas pessoas. Claro, todo mundo tem direito a ter sua opinião e a defendê-la como quiser. Respeitarei, e acharei esta máxima genuína até morrer.

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O problema é que essas expressões mascaram questões muito maiores, como, em relação aos  exemplos que citei: a defesa da violência como solução para – pasmem!- a violência (“Olho por olho, e o mundo acabará cego, já diria o Gandhi da internet); a culpabilidade da vítima de estupro (que dispensa qualquer argumentação mais elaborada); a negação de que, historicamente, os negros vêm sendo submetidos a todo tipo de humilhação, discriminação e exclusão social apenas por terem a cor de pele que têm; e, por último, a defesa de um regime político que censurou, torturou, matou e reprimiu a população brasileira por anos a fio.

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É isso, só isso. E qualquer um tem o direito de discordar destes argumentos – que não são meus, mas bastante universais-, mas acho essencial pensar no que está nas entrelinhas do que andam dizendo por aí, nas redes e na vida.

Entendo como o fator “calor do momento” pode nos tentar a soltar tais dizeres, entendo mesmo. Um jogo de futebol difícil, um assalto, a violência contra nós e nossas famílias, a insatisfação com a política. Nessas horas, muitas vezes vale o “Pronto, falei”. Somos apenas humanos, e sim, falamos muito sem que pensemos, movidos pela emoção, reação que é legítima, e também é minha resposta à réplica “Queria ver se fosse com você/sua mãe/seu pai/seu filho/etc .

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O perigo, a meu ver, é quando estes deslizes tornam-se filosofias de vida, coisas ditas de caso pensado. Não acho que eu tenha estado livre de ter deixado escapar algumas dessas pérolas ao longo da vida, sem avaliar o que disse – e, provavelmente, achando que estava certa. Mas creio que, com o passar dos anos, nossas ideias e a consequente manifestação delas vão ficando  (ou deveriam ficar) mais apuradas, mais reflexivas e mais preocupadas com a totalidade dos fatos do que com nossos próprios umbigos.

Na realidade, confesso que, muitas vezes, de todos de quem ouço e leio essas afirmações, gostaria de receber apenas um sorriso como o da doninha que me cruza o caminho diariamente, e seguir sem precisar escutar seus argumentos, que me soam tão estrangeiros a um “Bom dia”.

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