Cadê Malu?

Por Nara Vidal

O ano era 1979. Uma série televisiva mostrava, corajosamente, a história de uma mulher dentro de um casamento abusivo e autoritário, que decide, apesar das indizíveis dificuldades, se divorciar do marido. A filha adolescente do casal retrata as apreensões e ansiedades de um casamento desfeito e o futuro incerto da mãe que vive numa sociedade descaradamente machista e misógina. Porém, a protagonista é um símbolo de emancipação e feminismo. Sua rebeldia e proclame de independência inspiram e fortalecem mulheres em todo o Brasil. Sim, é possível quebrar as correntes do aprisionamento de um casamento falido, sem respeito ou admiração mútuos, apesar das crianças, por causa das crianças. E para que serve a Arte? Acredito que sirva para um milhão de coisas. Uma delas, o desconforto e a reflexão. Malu Mulher trouxe, lá na época tenebrosa da ditadura, um importante grito de liberdade.
Quarenta anos se passaram e estou estarrecida. O que aconteceu com a atriz que inspirou mulheres como aquelas da geração da minha mãe? Regina, que muro foi esse onde você bateu a cabeça de forma tão grave? Que arte é essa obcecada pelo pum do palhaço, Regina? A emancipação que você precisou conhecer e entender para viver tão convincentemente a Malu Mulher que ia lá começar de novo a cada episódio, é parte latente, pulsante e fundamental de um movimento de respeito aos gêneros, a igualdades sociais e justiça de oportunidades. Lembra, Regina, como o marido da Malu era um cretino que a humilhava? Era violento. Eu me lembro da minha mãe me tirar da sala enquanto eu brincava de boneca de papel, depois do Pedro Henrique quebrar um copo de uísque durante uma briga com a sua personagem. Palmas para a Malu que disse não à humilhação e à agressão de um opressor que queria diminui-la por causa de inseguranças próprias. Imagina, Regina, a cara de espanto da Malu Mulher ao ter que lidar com o governo atual? A Malu teria sido a primeira a fazer campanha contra a tragédia que se instalou com churrasco, jet ski e toda a cafonice lá no palácio. Como sofreu a Malu, lembra, Regina? Preconceito, injustiça, julgamentos. Mas ela era uma mulher de fibra e de caráter. Sabia que o opressor é no fundo um fraco, um verme, um sangue suga de ignorantes e tolos. Malu deu jeito de expor aquele homem ao ridículo que ele representava.
Regina, o que aconteceu com a Malu? Onde ela se escondeu? Será que ela foi calada no subterrâneo das torturas autorizadas pelos generais? Justo agora que precisamos tanto dela para lutar contra esses novos velhos opressores que querem nos diminuir como cidadãs. Regina, cadê a Malu? Se lembra do especial organizado pelo diretor da série, o Daniel Filho que reuniu Rita Lee, Maria Betânia, Gal, Marina Lima, Elis… Elis, Regina, Elis Regina! Aquela que cantou Aldir Blanc incontáveis vezes.
Regina, você soube que Aldir morreu? Seria bom avisar para a Malu. Ela vai ficar triste, vai querer expressar suas sinceras e profundas condolências.
Regina, você soube que morreram Migliaccio, Rubem Fonseca, Sérgio Sant’Anna, Marcos Vinícius Quiroga, Moraes Moreira. Você soube, Regina?
Esquece a palhaçada, Regina. Pergunta pra Malu e ela vai te lembrar que temos mais que pão de queijo, caipirinha. Temos “Resposta ao tempo”, “Agosto”, “O voo da madrugada”, “Acabou chorare”, tio Maneco, “Lição de Morandi”.
E as mortes, Regina? Se existe morte, existe vida, né? Esse pessoal da televisão fica lá desenterrando mortos e te deixando de saia justa na frente do seu fiel público. Esses jornalistas… Mas sabe, Regina, fico achando que tem morto demais em cova rasa que não foi, de fato, enterrado e por isso ainda ouvimos seus gritos de aflição. Você dorme bem, Regina? Você está certíssima: o contrário de vida é morte, não é assassinato.
E os projetos futuros, Regina, conta para gente.
Fará qual papel? De boba? Papel não, papelão, e tem sido convincente. Parabéns.

Nara Vidal

Nara Vidal

Nara Vidal é escritora. Nascida em Guarani, Zona da Mata mineira, em 1974, há quase duas décadas vive em Londres. É autora de mais de uma dezena de títulos, a maioria deles publicados em português. Dentre eles, os infanto-juvenis "Dagoberto" (Rona Editora) e "Pindorama de Sucupira" (Penninha Edições), os de contos "Lugar comum" (Passavento) e "A loucura dos outros" (Reformatório), e o romance "Sorte" (Moinhos), premiado com o terceiro lugar no Oceanos de 2019.

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