O lençol, o buraco e a proximidade da morte
Ei? Psiu?
Sua bisavó ou quem sabe sua avó já te contou sobre a prática do ‘buraco no lençol’?
Não?
Então leia esta história. Ela é sobre a mais velha paciente que atendi até hoje…
Tive a honra de conhecer Sofia* quando sua idade já passara dos 93.
Uma fofa!
Ligou, agendou e… veio!
Antes das pessoas começarem a terapia, é comum rolar o que chamo de ‘ensaio terapêutico’:
Assim como o que antecede uma grande estreia são inúmeros treinos, os primeiros passos rumo ao autoconhecimento pode precisar de ensaios antes que o espetáculo da transformação se inicie…
É um tal de marca e desmarca, marca e esquece, marca e não vem…
Super compreendo!
No artigo Sobre escrever um blog, contar histórias e ajudar pessoas mencionei que terapia é um processo que requer coragem…
Voltando à história de Sofia…
Quando me deparei com aquela senhorinha linda na sala de espera, pensei:
“Seria a angústia da proximidade da morte?”
“Seria a notícia de uma doença?”
“Quem sabe o fantasma da solidão?”
Nada disso…
Ela começou o discurso assim:
“Minha filha, tenho 93 anos.
Não sei quanto tempo de resta…
Mas, decidi que não vou morrer sem saber ‘dessas’ coisas…
Descobri que sua especialidade existia e por isso estou aqui” …
Mas, porque uma viúva de 93 anos buscaria uma sexóloga?
“Seria um namorado? Que legal!” – Pensei …
E ela prosseguiu:
“Sou viúva.
Me casei aos 15 anos.
Vivi com meu marido até dois anos atrás quando Deus o levou.
Ele foi um bom marido.
Pai dedicado…
Mas, nascemos numa época muito diferente…
Tenho muitas dúvidas sobre Sexualidade…
Não pense que arrumei um namorado… (risos)
(Confesso que fiquei frustrada nesse momento. Imagina que maneiro!…)
“Apenas não vou levar estas dúvidas e angústias para o caixão” – Continuou ela.
Quanto mais ela falava, mais curiosa eu ficava…
Mas, afinal, o que aquela mulher precisava tanto saber?
“Você já ouviu falar do ‘buraco no lençol’?”
Ela perguntou.
“Hein??” – indaguei.
“Sim! O buraco no lençol”…
“A culpa é do maldito buraco no lençol!”
Minha mente fez uma busca rápida em meus arquivos sobre ‘História da Sexualidade’…
Só poderia ser disso que Sofia falava, considerando-se a idade dela.
Perguntei:
“A senhora está falando sobre a antiga prática sexual?
Aquela onde os casais para não se tocarem, mantinham relações sexuais através de um buraco no lençol, feito propositalmente?”
“Simmmm!” – Exclamou ela!
“Graças a Deus! Você sabe!”
E ela foi contando…
Que mulher apaixonante!
Sabedoria inversamente proporcional ao corpinho magro…
“Então, eu quero saber de tudo!”
“Eu quero ver tudo!”
“Você me mostra?”
“Você me explica?”
“Não posso morrer assim” … (kkkkkkkkkkk).
Era nítida a preocupação dela, não necessariamente com a morte…
Parecia que, o que realmente incomodava, era a desinformação…
“Claro, que conto, mostro, explico!” – eu disse.
Ela tentou disfarçar mas, eu vi…
Vi olhinhos boiando em lágrimas…
Parecia que Sofia sentia um misto de felicidade com alívio, sei lá…
Mas, como isso foi feito?
Educação Sexual, meu caro leitor!
Começamos um processo de Educação Sexual ‘inverso’…
Porque primeiro Sofia ‘vivenciou’ o sexo e só aos 93 anos recebeu informações adequadas sobre Sexualidade Humana.
Foi um processo liiiinnnndo!
A maior decepção daquela jovem senhora (Sim! Era uma mente muito jovem!) era que, mesmo vivendo 76 anos ao lado do marido, ela NUNCA vira um homem nu (Viu os filhos, mas, não vale, né?).
Dizia ela:
“Minha filha, na época em que me casei, mulher “direita” não via homem pelado!”
“Muito menos tocava em suas ‘partes'” …
“Sentir prazer? Esse tal de orgasmo?”
“Isso era pecado mortal!”
“A gente não podia dar sequer nem uma ‘gemidinha’” (E ria! Eu também!).
“As mulheres dos bordéis podiam tudo, as esposas, nada!”
“Acho que a vida delas era bemmmm melhor que as nossas!” (Mais risos!).
“Somente depois de velho meu marido deixou de frequentar ‘puteiros’” …
“Isso só porque não conseguia mais”…
“E só a partir daí ele foi só meu”…
“E VOCÊ ACHA JUSTO EU MORRER SEM VER UM PÊNIS?” – disse ela quase gritando (risos, risos e mais risos).
“NÃAAOOOO!” – eu disse.
“Quantas vezes tive aquele ‘trem’ dentro de mim sem a mínima vontade?” – continuou.
“Eu só imaginava como devia ser” …
“Mas, Sofia – eu perguntei – mesmo depois de tanto tempo, vocês não abandonaram o lençol com buraco?”
“Simmm!” – disse ela.
“Mas, era sempre no escuro e eu não podia tocá-lo”…
“O ‘disgramado’ do lençol saiu mas, eu continuei sem poder pegar na coisa!” (hahahahaha…).
As sessões posteriores foram fabulosas!
Era assim:
Pergunta, gargalhada, espanto, gargalhada, choro, gargalhada…
Eu utilizei livros didáticos, ilustrações, vídeos e até um vibrador!
(Nem que fosse artificial, aquela mulher precisava manipular um pênis, não acha?)
Ela se chocava, se encantava e entendia…
Foi simplesmente in-crí-vel!
Depois de alguns meses, encerramos o trabalho.
Fortemente abraçada comigo, Sofia sussurrou ao meu ouvido, no nosso último encontro:
“Muito obrigada! Agora posso morrer em paz” …
Adeus Sofia
E infelizmente, o adeus àquela musa inspiradora não demorou muito…
Sofia faleceu aos 95 anos, vítima de um acidente vascular cerebral (AVC).
Fiquei muito triste…
Fui ao velório…
Ali, esticado naquela caixa de madeira fria, estava seu corpo.
A beleza se fora…
Porque a beleza mora na alma…
A alegria mora na alma…
A atitude mora na alma…
Sofia é um nome fictício, você sabe…
Escolhi este porque mais sábia impossível…
O que faltava àquela mulher além do tempo era só informação…
Obrigada por me deixar ser útil ao cumprimento de sua promessa, Sofia*…
De vez em quando, ouço sua voz gargalhando e dizendo:
“Eu não vou morrer sem saber dessas coisas!”
Muito obrigada por me inspirar todos os dias…
Beijos na sua alma linda…
Ainda sobre o lençol com buraco…
A partir da era Medieval, por causa da forte influência do Catolicismo, os relacionamentos amorosos ficaram mais pudicos.
Sexo era considerado pecado.
O certo era que fosse evitado, exceto com objetivo de procriação.
A prática do buraco no lençol data desta época.
O lençol evitava que os corpos se tocassem, assim como, pensamentos que não fossem “puros”.
Sofia*, foi uma das inúmeras mulheres no mundo impedidas de viver a Sexualidade de forma plena.
Gemidos, posições para além da ‘papai e mamãe’, uso de termos excitantes, entre outras práticas, eram consideradas abomináveis.
Orgasmo feminino? Nem se fala… Pecado mortal!
Assim como também era pecado, a mulher negar-se a manter relação com o marido.
Fato aceitável apenas se esta estivesse MUITO doente (tipo morrendo), ou se estivesse menstruada, pois, neste estado, era considerada impura!
Aff!…
Viva ‘nois’!
Quer mais?