
Em pleno mês de maio, tradicionalmente marcado pelas homenagens às mães, um tema sensível e ainda pouco debatido ganha espaço: a saúde mental materna. No Dia Internacional da Conscientização sobre a Saúde Mental Materna, celebrado nesta quarta-feira (7), a campanha Maio Furta-Cor propõe um olhar mais realista e empático sobre os desafios enfrentados pelas mulheres durante a maternidade.
Inspirada nas tonalidades do furta-cor, que muda conforme a luz e o ângulo, a campanha simboliza a complexidade e as muitas faces da experiência materna. Assim como a cor, a maternidade também é feita de nuances, longe da idealização socialmente construída de plenitude e felicidade constantes.
A expressão “saúde mental materna” se refere ao estado psicológico e emocional das mulheres e/ou pessoas que gestam, abrangendo aspectos como o bem-estar mental, o equilíbrio emocional e a capacidade de lidar com os desafios inerentes à maternidade. Isso inclui a gestação, o parto, o pós-parto e o cuidado com os filhos.
A sobrecarga emocional e estrutural enfrentada pelas mães, especialmente durante o ciclo gravídico-puerperal, pode levar ao sofrimento psíquico, manifestando-se em quadros como depressão, ansiedade e burnout materno.
Levantamento realizado pela fundação britânica Parent-Infant em 2023 revelou que uma em cada dez mulheres relatou dificuldades em estabelecer vínculo com o próprio bebê. O mesmo estudo apontou que cerca de 73% dessas mães não receberam qualquer tipo de orientação sobre como fortalecer essa conexão afetiva, sendo muitas vezes orientadas apenas a “tentar criar laços”, sem o apoio técnico ou psicológico adequado.
No Brasil, a realidade é igualmente alarmante. Estima-se que cerca de 25% das mães enfrentam a depressão pós-parto entre seis e 18 meses após o nascimento do bebê.
Assunto ainda é tabu
Para Hamabilhe Garcia, organizadora da campanha nacional e representante de Juiz de Fora, a saúde mental materna ainda é um tema cercado de resistência — inclusive entre as próprias mulheres. “A sociedade já fala pouco sobre saúde mental. Quando o foco são as mães, o distanciamento é ainda maior. Muitas sofrem em silêncio, com medo do julgamento, de parecerem fracas ou incapazes. E o receio de pedir ajuda ainda é muito presente. O estigma pesa e muito.”
Hamabilhe também destaca como a forma idealizada da maternidade contribui para o silenciamento. “A maternidade exaustiva, com mães sempre cansadas e sobrecarregadas, é tratada como normal. Mas a mãe polvo não existe. Precisamos desconstruir esse ideal inalcançável e falar sobre a maternidade possível.”
A campanha Maio Furta-Cor teve início em 2021, idealizada pela médica psiquiatra Patrícia Piper e pela psicóloga Nicole Amorim, a partir da percepção do aumento significativo nos casos de adoecimento emocional entre mães durante a pandemia de Covid-19.
A iniciativa tem como objetivos sensibilizar a sociedade sobre a importância da saúde mental materna, promover ações baseadas em evidências científicas e incentivar a criação de políticas públicas voltadas ao tema. Entre as propostas está a inclusão oficial do mês de maio nos calendários estaduais e municipais como o período de atenção à saúde mental das mães. “Nosso foco é ir além do consultório, precisamos de políticas públicas.”
Saúde mental materna direito de todas
Sob o slogan da campanha deste ano, o Maio Furta-Cor reforça a urgência de olhar com seriedade para a saúde mental materna. Estudo publicado pela Science Direct em 2023 estimou que o custo econômico de não tratar transtornos mentais no período perinatal, que vai da gestação até o primeiro ano de vida do bebê, pode chegar a 5 bilhões de dólares ao longo da vida.
A pesquisa aponta que países de baixa e média renda, como o Brasil, concentram as maiores taxas de transtornos mentais maternos, com prevalência entre 15% e 30% antes da pandemia. Com a chegada da Covid-19, os índices dispararam: 47% das mães apresentaram sintomas de depressão e 42%, de ansiedade.
Apesar de avanços importantes, como a mudança no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) em 2023, que passou a garantir acompanhamento psicológico a gestantes e puérperas no Sistema Único de Saúde (SUS), a organizadora da campanha, Hamabilhe Garcia, ressalta que o Brasil ainda carece de políticas públicas específicas e estruturadas para o tema. “Algumas cidades abraçam a causa, mas ainda enfrentamos resistência. A legislação atual é um passo, mas está vinculada ao ECA e não trata diretamente da saúde mental materna como uma política pública independente e contínua”, avalia.
Calendário municipal
Em Juiz de Fora, a campanha Maio Furta-Cor passou a integrar oficialmente o calendário municipal em 2023. A lei prevê ações de conscientização, rodas de conversa, oficinas, palestras, marchas e outras atividades gratuitas voltadas à promoção da saúde mental materna. No entanto, segundo a organização da campanha, ainda há dificuldades para viabilizar a execução das ações previstas em lei de forma efetiva e contínua. “No último ano, apenas um projeto foi realizado. Este ano participaremos de uma marcha, mas nada exclusivo e voltado 100% para a lei foi feito.”
A Tribuna questionou sobre a execução da lei e a possível programação especial relacionada à campanha durante o mês de maio, mas a Prefeitura de Juiz de Fora (PJF) não se manifestou até o fechamento desta edição.
Apesar dos desafios, Hamabilhe destaca que outras iniciativas voltadas ao bem-estar materno têm alcançado avanços significativos. Um exemplo é a Lei Manu, sancionada em outubro de 2023, que garante que mulheres que sofreram perda gestacional, neonatal ou óbito fetal tenham o direito de serem internadas em áreas separadas das demais parturientes, tanto na rede pública quanto na privada. A lei também assegura a presença de um acompanhante de livre escolha durante toda a internação e o encaminhamento para atendimento psicológico, quando solicitado ou indicado por profissionais de saúde.
Sintomas costumam ser desvalorizados
Para a médica psiquiatra Maria Esther Delgado, embora existam leis que garantam o encaminhamento da gestante a especialistas, ainda há preocupação com o tempo que esse atendimento leva para acontecer. “Acredito que o sistema está preparado. O SUS é muito bem estruturado, então não se trata de falta de estrutura. A dificuldade está no fluxo: será que, quando um médico — um obstetra, por exemplo — faz o encaminhamento, essa paciente realmente consegue chegar ao especialista? Sabemos que a atenção básica funciona bem, mas o problema começa quando é necessário encaminhar para um especialista. E aí é difícil dizer em quanto tempo essa consulta acontecerá. De nada adianta o obstetra fazer o atendimento e o encaminhamento se a paciente só conseguir uma vaga com o psiquiatra para daqui a três ou quatro meses. Ela precisa de assistência agora. A principal dificuldade está, justamente, no tempo que essa mulher leva para, de fato, acessar o atendimento especializado.”
Sobre os sintomas mais comuns, a médica cita transtornos psiquiátricos como ansiedade e depressão, frequentes em gestantes quanto em mulheres que não estão grávidas. “O problema é que, muitas vezes, eles não são diagnosticados, justamente por conta de um imaginário social que desvaloriza os sintomas.”
Ela explica que queixas como desânimo, alterações no sono ou no apetite são muitas vezes normalizadas. “A mulher diz que está se sentindo mais para baixo, sem apetite ou com dificuldades para dormir, e ouve que tudo isso é ‘normal da gravidez’. Esses sintomas acabam sendo desvalorizados — seja pela família, seja até mesmo pelo obstetra. E isso não deveria acontecer.”
Maria Esther reforça que o sinal de alerta deve acender quando esses sintomas, mesmo os considerados comuns, começam a afetar a qualidade de vida da gestante. “Se o choro é diário, se a ansiedade gera angústia constante, se a insônia não tem relação apenas com o desconforto físico da gravidez, mas é recorrente, então é hora de prestar atenção. Esses sintomas precisam ser levados a sério, tanto na gestação quanto no pós-parto. A saúde mental da mulher deve ser olhada com cuidado em todas essas fases”, conclui.
O medo do tratamento
A decisão de iniciar um tratamento medicamentoso durante a gestação ainda gera muita insegurança entre as mulheres. Para a psiquiatra, esse receio está profundamente ligado a tabus que cercam o uso de medicamentos psiquiátricos, especialmente durante a gravidez. “Essa é uma pergunta muito importante, porque ainda existe muito tabu sobre as medicações. É verdade que há medicamentos que não são seguros, mas também existem inúmeros outros que são totalmente seguros para uso durante a gestação.”
Maria Esther alerta, ainda, para os riscos da automedicação. “O mais importante é que o uso seja feito com o acompanhamento adequado. O que não pode acontecer, e infelizmente ainda é comum no Brasil, é a automedicação. Aquela coisa de ‘estou ansiosa, vou tomar um remedinho que minha mãe ou minha tia usam para dormir’. Isso, sim, é muito perigoso e não deve acontecer.”
Apesar de alguns casos o uso de medicamento ser necessário, a médica comenta que há outras formas de tratamento tão importantes quanto. “O tratamento não se resume ao uso de medicação. Ele envolve acolhimento — tanto da família quanto dos profissionais de saúde — e também passa pela psicoeducação, ou seja, explicar para essa mulher que o que ela está sentindo pode ser normal, ajudá-la a entender por que esses sentimentos estão surgindo. Em muitos casos, é fundamental oferecer psicoterapia, para que ela tenha um espaço seguro onde possa falar sobre o que está vivendo. É importante lembrar que o cuidado não é apenas medicamentoso.”
“Muitas vezes, por causa da questão da medicação, acaba-se adiando ou evitando o tratamento, mas é importante entender o que realmente está em jogo. O que se perde é muito mais do que se imagina: perde-se o vínculo afetivo com a criança, com o parceiro e com as pessoas ao redor. É uma perda significativa na qualidade de vida da mulher, e isso pode gerar prejuízos que vão além dela — pode inclusive impactar o desenvolvimento da criança, pela ausência emocional e, muitas vezes, física da mãe. Por isso, é fundamental olhar para essa situação com seriedade e garantir que ela receba o tratamento necessário, para evitar consequências ainda mais graves no futuro.”
Maternar: experiência coletiva
A maternidade, quando vivida de forma isolada, pode se tornar profundamente exaustiva e solitária. Por isso, pensar o maternar como uma experiência coletiva é uma estratégia fundamental para aliviar a sobrecarga emocional das mães, fortalecer redes de apoio e promover uma criação mais saudável para os filhos. Quando o cuidado com as crianças é entendido como responsabilidade de todos — não apenas da mãe —, a mulher ganha em qualidade de vida, bem-estar emocional e autonomia.
Dados da pesquisa “Materna – O que pensam e querem as mulheres”, realizada pelo Universa/UOL, ilustram essa realidade. Quase um terço das participantes (29%) se identificam como mães solo e, entre todas as entrevistadas, 71% afirmam dividir a responsabilidade pelos filhos. Para aquelas que cuidam das crianças sozinhas, os principais desafios incluem a falta de apoio financeiro (46%), a dificuldade em encontrar apoio emocional (39%), a organização da rotina com os filhos (37%), a conciliação entre trabalho e cuidados (37%) e a ausência de rede de apoio (37%).
Essa sobrecarga, infelizmente, é recorrente. De acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), do IBGE, 73% das mulheres relatam dedicar mais tempo que os homens às tarefas domésticas e aos cuidados com filhos, idosos ou dependentes. A pesquisa Materna também revelou que metade das mães passa mais de nove horas por dia cuidando dos filhos; 53% trabalham entre duas e nove horas, e 59% dedicam de uma a cinco horas diárias aos afazeres domésticos. Esses dados não apenas revelam o acúmulo de funções, mas escancaram a urgência de se pensar em maternidades mais coletivas, com suporte real e compartilhado.
A psiquiatra reforça a importância dessa rede de apoio, especialmente do médico que acompanha a gestação, da família e do parceiro. “O apoio familiar e do parceiro é fundamental — tanto no acolhimento emocional quanto na divisão das responsabilidades. É esse suporte que evita que a mulher se sinta sozinha ou sobrecarregada. Muitas vezes, é esse parceiro ou familiar próximo que percebe quando algo não vai bem. Um simples ‘estou percebendo que você não está bem, vamos ao médico?’ pode fazer toda a diferença. Mulheres que enfrentam depressão durante a gestação tendem a comparecer menos às consultas. Ter alguém que incentive e diga ‘vamos juntos, eu vou com você’ tem um impacto enorme. Esse tipo de presença transforma toda a experiência da maternidade.”
*estagiária sob supervisão da editora Fabíola Costa