Ele não para. As mãos vibram no ar, vão para frente e para trás, pegam uma baqueta, tocam em um prato e fazem barulho. O som, estridente, ressoa e logo é pausado pela mesma vara de madeira. Os pés balançam em um compasso incompreensível. O corpo se agita. A boca abre e gargalha. João Carlos Guedes Pimentel bate e faz música. Bate hoje porque no passado muito apanhou. “O ser humano não está preparado para as diferenças”, comenta, lembrando-se do tempo em que sua altura de 1, 49m – “a mesma do (escritor) Aníbal Machado”, gaba-se – era entrave para a confiança em si mesmo. “Fui ser músico para me suicidar, porque músico pode tudo, pode fumar, beber e cheirar”, conta, antes de rir e esfregar as mãos nos olhos, levemente marejados.
Filho de Juiz de Fora, o mais velho de quatro irmãos, descendente de índios, italianos da Calábria e também dos escandinavos, superou o que se assemelhava a um fardo. “A música parece que venceu, ao menos até agora. Ainda tenho umas ideias…”, diz Big Charles, comprovando sua fala ao contar sua idade: 70, 50 deles dedicados à música, que já o fez viver no Rio de Janeiro, São Paulo, Tiradentes, Arraial d’Ajuda, Santos e muitos outros destinos. Se em suas lembranças prevalecem o tratamento na adolescência para aumentar a altura – “Tinha que tomar injeção dia sim dia não. Era difícil” -, também resiste a memória de um homem que cresceu pela arte. Como o flâneur de Charles Baudelaire, aquela “pessoa que anda pela cidade a fim de experimentá-la”, Big hoje anda mais tranquilo, quase a descansar pelo tempo em que o ritmo era acelerado, suingado em excesso.
Os bailes da vida
Quando decidiu-se pela bateria, ganhou o instrumento de uma tia que morava no Rio e lá teve como professor o prestigiado Sut Chagas. Em três meses, já ganhava dinheiro, primeiro tocando no Galeto, onde acompanhava uma senhora que tocava e cantava muito mal. Depois foi para o Sambão, uma das mais famosas casas cariocas, que era do Sargentelli, o homem das mulatas. Acompanhou Nelson Cavaquinho, Zé Keti (“Era uma figuraça”, lembra), Monsueto de Menezes e tocou no conjunto de rock argentino La Pesada del Rock and Roll. Dali foi um pulo para integrar a polêmica montagem produzida e protagonizada por Sérgio Britto, “Missa leiga”, que teve diversos problemas com a ditadura militar e tornou-se uma das principais produções do período. “A peça só começava se eu estivesse, porque tinha um solo de bateria no início, uma briga do som com o Sérgio, que ele até babava de ódio”, recorda-se Big, que seguiu em cartaz por um ano e meio, em temporada que ia de terça a domingo.
A casa que vendia som
Ainda que admirasse o pessoal do teatro, “que era outro nível”, o baterista que também fez “Godspell”, na década de 1970, tinha mais amigos jornalistas, com os quais sempre se encontrava em um botequim no Leme. Um deles o fez parar de assinar como Carlinhos Guedes. “Na ‘Missa leiga’ tinha tanta encrenca para fazer, e ele falava: ‘Cara, você é fera’. Daí começou a me chamar de ‘Big Charliê'”, conta. Segundo ele, na época da alcunha, conheceu espaços que se preocupavam com sua arte. Foi então que teve a iniciativa de transformar o antigo bar Vitrô em Jazz Clube Bar, no Bairro São Mateus. “Lá tocaram todos os grandes músicos brasileiros. Depois enjoei de lá e abri o Thelonious”, diz. A casa, no São Pedro, contava até com anfiteatro e marcou época na cidade. “Juiz de Fora, hoje, não tem casa que venda música. As casas vendem quibe. ‘Ah! Tenho um pedacinho aqui que podia botar um cara que toca violão'”, critica em tom de brincadeira.
Ontem foi o futuro
Com os dias de agenda cheia, Big comprou um terreno no Bairro Jardim das Pedras Preciosas – “Bonito e tranquilo pra caramba. O mais vagabundo lá sou eu” ri -, onde construiu sua casa. Mas, como todo boêmio, não pensou que superaria tanto o estigma da altura e nem ao menos contribuiu com a Previdência Social. “O futuro foi ontem. Para quê pensar em futuro?”, dispara. Beneficiado pelo projeto federal de Prestação Continuada da Assistência Social, ele segue seus dias escrevendo (já lançou um livro, “Retrato de cabeça”, um disco solo homônimo e outro álbum, “Ancestrais futuros”, em parceria com o saxofonista Glaucus Linx) e pintando telas abstratas. Pai de um músico, prova de que seu ofício servia de reflexo, e avô de um garotinho, o baterista não para, de tocar e de rir. O bom humor, de onde vem? “Do absurdo. Se não é o absurdo, eu já teria morrido. Imagina, agora, se eu quero morrer. Não. É o absurdo que salva a gente”, filosofa. Pensa em conquistar muita coisa ainda? “Tenho muito trabalho pela frente. Não posso morrer agora. Tenho muita coisa para tocar, para escrever, para pintar”, conclui. Só há uma reclamação: “O grande problema é a solidão intelectual. Está ruim de conversar, não é mesmo?!”. Não, Big. Contigo, não está ruim de conversar. Pena esta página não ter mais espaço.