Apagadas as luzes, o menino correu e abraçou o pai e a mãe. “Estou tãooo feliz!”, disse Matheus Pagliarini de Almeida ao término de seu especial de fim de ano, cantando Roberto Carlos no auditório da Igreja de São Mateus, no sábado que antecedeu o Natal. Passada a emoção, mantém-se a satisfação. “A apresentação foi muito boa. Estava muito bem preparada. Meu show foi perfeito”, gaba-se o menino de apenas 10 anos, que para a apresentação teve o acompanhamento de um tecladista, um violinista e um trio de pequenos backing vocals, além de duas bailarinas com figurino dos anos 1960 para dançar um pot-pourri com canções da Jovem Guarda. “Ele escolheu o repertório, os backing vocais, o que seria feito no meio da música, tudo, ele dirigiu o próprio show”, orgulha-se a mãe, Viviane Pagliarini, de 37 anos, para logo explicar a paixão do filho pelo cantor e compositor de 77 anos, cujo primeiro sucesso data de antes do nascimento dos pais. “Lá na minha cidade, a gente tinha uma vitrola e os LPs do Roberto Carlos. A minha mãe sempre ouviu, é a paixão da família dela. Eles até choram assistindo ao especial. O Matheus, então, começou a colocar para escutar e foi gostando demais. E tudo o que ele começa a gostar, procura saber mais. Ele foi saber da vida do Roberto Carlos, assistiu a todos os especiais e até pegou uns tiques dele, de cantar só no pedestal e o jeito de bater palma”, conta.
Basta cantar um trecho de uma música do Rei que Matheus diz o título, o ano de gravação e o especial da Globo em que foi exibido. “Ele sabe tudo sobre o Roberto Carlos, o nome da mãe, dos filhos, onde foi o acidente dele, ano que nasceu, onde nasceu. O autismo tem hiperfocos, e esse é um hiperfoco dele”, explica o pai, Dan Kayne de Almeida, 42, acrescentando que, atualmente, o hiperfoco do garoto volta-se para assuntos relativos ao futebol. A música, contudo, antecede a própria experiência de mundo. “A musicalidade do Matheus eu observo desde a minha barriga. Lembro que um dia chamei minha mãe para ver ele mexendo com ritmo. Quando ele estava com seis meses, cantei ‘Além do arco-íris’, e ele chorou. Aí pensei em cantar uma música alegre, e ele riu. Repeti, e ele fez de novo. Uma nota musical já o fazia chorar ou rir. Ele tem muita sensibilidade com a música”, conta a mãe, que quando morava em Três Corações cantava em casamentos. Há quatro anos, a família mora em Juiz de Fora. “Se você der um tom para ele, ele entra na nota”, reforça o pai. “Meu sonho era fazer segunda voz, já escutei Roupa Nova direto, e nada. Ele tinha 6 anos quando começou a fazer a segunda voz enquanto eu cantava. Ele foi se tornando tão especialista que temos um estudiozinho lá em casa, onde eu gravo ele num canal e, depois, gravo a segunda voz num segundo canal e até num terceiro canal. Vira um coro com as vozes que ele consegue fazer”, exemplifica Viviane. “Vejo que ele tem talento. E tem desde sempre. Estou estimulando o máximo que posso, mas a decisão (de ser artista) vou deixar para ele”, diz ela, sob os olhares do filho, que em seguida dispara: “Quero ser conhecido em todas as profissões que eu tiver.”
Silêncio virou cantoria
Nem sempre foi música. Por longos anos, Matheus viveu o silêncio. “Ele não falou uma palavra até 3 anos e 8 meses. E com 4 anos e meio ele já tinha lido mais de 200 livros. Ele tem facilidades tremendas e dificuldades que vamos superando devagar”, pontua o pai Dan. Matheus lê com facilidade, mas apresenta algumas dificuldades para interpretar e na formulação de frases. A memória, por sua vez, é espantosamente boa. Ele repete integralmente comerciais de TV e até o calendário. “Que dia caiu 17 de abril, Matheus?”, pergunta a mãe. “Sexta”, responde. Após uma pesquisa no celular, a confirmação. “Como ele tem muita facilidade em memorizar as coisas, comecei a ensinar história e geografia para ele. Com 4 anos e pouco, ele já sabia todas as capitais do Brasil e um tanto de história. Hoje ele sabe um tanto de orações em latim. Uso o potencial da memorização dele, aproveitando para o que vale a pena”, conta o pai, e Matheus acrescenta: “200 palavras em inglês”, referindo-se ao novo projeto, iniciado nas férias escolares para compensar a rotina atarefada. “Domingo eu tenho o coral de crianças da Paróquia São Mateus; segunda eu tenho psicopedagoga, fonoaudióloga, aula de violão e de canto; na terça eu tenho caratê e futsal; na quarta eu estou livre, mas tenho que assistir os jogos de futebol do flamengo (pela TV); na quinta eu vou no caratê e no futsal; na sexta eu vou na psicóloga e na aula de informática em educação especial”, enumera Matheus, cheio de fôlego. Enquanto na escola ele tem o auxílio de uma bidocente, fora dela tem o apoio incondicional dos pais. “Como servidor estadual, sou dentista no Ceresp, tenho o benefício legal que me permite estar com ele meio período, recebendo integralmente, para acompanhá-lo. Ele só tem essa evolução porque tem um aparato atrás. Ele saiu do autismo moderado para o leve”, comenta o pai, apontando, ainda, para o apoio que também recebem do trabalho da esposa, militar no Hospital Geral do Exército.
Diagnóstico virou perspectiva
Aos 2 anos, Matheus puxava os pais pelas mãos, apontava, gesticulava, esperneava, mas não falava. “Minha mãe, que teve dois filhos, percebeu algo diferente. Levamos a uma psicopedagoga, que fez uns testes com ele e disse que achava que ele tivesse autismo. Nessa mesma época, teve uma palestra na cidade com um especialista em autismo. Fomos assistir, e o Matheus ficou quatro horas no meu colo sem dar um pio. Marcamos, em seguida, uma consulta, mas ele já estava cansado. Respondi a um questionário, ele fez a soma e disse que meu filho tinha autismo. Ele nem encostou no Matheus. Eu saí de lá arrasada. Fomos para casa e o levamos na Apae. Ele passou por cinco profissionais e teve um diagnóstico de gênio e hiperativo. Um belo dia, aquele médico da palestra ligou para a minha casa e perguntou pelo Matheus e pelo tratamento dele. Minha mãe falou que ele não estava fazendo tratamento, e ele falou que não podia, que o tempo estava passando e não teria volta”, conta Viviane. O médico, então, indicou um reconhecido profissional de São Paulo, para onde Matheus foi levado. “Se eu falar que ele tem autismo, estarei sendo irresponsável. Mas se eu falar que ele não tem, também estarei sendo. Seu filho precisa de fonoaudiólogo, psicólogo e escola, todos especializados em autismo. O resto das terapias, se tiverem saco e dinheiro para levar, será melhor ainda”, disse o profissional. “Valeu a pena por escutarmos: ‘Parem de procurar nome! Estimulem!”, reforça o pai. “Quando saímos do consultório, já dividimos. O Dan ficou com a parte de ensinar, e eu, com a lúdica. O Matheus tinha muita dificuldade de olhar nos olhos, e eu fui trabalhando o contato físico. Consegui muito ganho com ele pelo riso”, acrescenta a mãe. Matheus ganhou asas. “Sabe o que eu vou ser quando crescer? Cantor, jornalista e jogador de futebol”, diz o menino, para logo ensinar: “Mas como a vida é das pessoas, elas escolhem a profissão quando elas quiserem.”
Emoção virou arte
Dan e Viviane se conheceram na adolescência. Namoraram no percurso de amadurecimento e quando o caminho já parecia bastante claro para os passos seguintes, decidiram se casar. “Foi em 2001”, conta Matheus. “Conheci Viviane quando eu tinha 19, e ela, 14. Nos casamos depois de namorar e descobrimos que ela tinha endometriose. Entramos na fila de adoção, então. Cheguei até a pedir um filho especial, mas ele chegou naturalmente”, lembra o homem, que ao lado da mulher dá palestras com seus testemunhos. Na cidade de Três Corações, onde moraram, os dois chegaram a criar uma associação pela promoção dos autistas. Durante o processo de aceitação e valorização pelo qual passaram, optaram por não apartar Matheus das discussões acerca de sua condição. Tanto que, um dia, em sala de aula, ao ver a professora falando sobre o autismo, o menino pediu a palavra para falar dos benefícios e malefícios de ser autista. Um dos pontos positivos, ele carrega na ponta de língua: “Tenho a Raíssa (a bidocente)”. “A gente inverte a situação. Ao invés de mostrar que ele é diferente por só ele ter algo, falamos o quanto ele é especial por só ele ter a chance. Tudo o que vem como um problema, a gente embrulha e devolve como um presente”, aponta o pai, que enquanto fala tem a atenção do filho com seu movimento repetitivo, sincronizando os dedos e as mãos. “Alguns fazem flaps, outros andam nas pontas dos pés, ou os dois”, explica Dan. “As pessoas veem no Matheus uma esperança. Sabem de todas as dificuldades e medos que ele já superou”, emociona-se Viviane. Dentre as superações do garoto, está a timidez e a resistência a barulho, convertida na alegria de ser aplaudido por uma plateia lotada nas apresentações das bandas militares no Cine-Theatro Central. “Temos o sonho de todos os pais: deixá-lo o mais próximo da independência possível. Meu sonho é que, amanhã, ele seja a voz que fale do autismo”, afirma o pai. “Todas as minhas emoções são artísticas”, diz Matheus, numa sensível e potente metáfora.
Assista uma apresentação de Matheus no vídeo abaixo: