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Feito Ronaldo Couri, feito noite

“O vampiro de Juiz de Fora”: o artista visual Ronaldo Couri representa o flâneur, o caminhante de Baudelaire
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Casaco longo e preto, como o cachecol, a calça, as botas de couro e os óculos. Noturno. “Gosto da cor preta. Compõe muito meu personagem. As cores escuras sempre me fascinaram mais. As cores claras parecem ser mais receptivas. Eu sou mais misterioso. E sempre gostei de óculos escuros. É um acessório que também faz parte do meu personagem.” No guarda-roupa só tem preto, Ronaldo Couri? “Tenho variações. Azul, marrom e outras cores fechadas”, responde o homem que, soturnamente, caminha pela cidade e, como vampiro, prefere a noite.

“Habito o imaginário inconsciente e coletivo da cidade. Mesmo que eu não perceba, as pessoas me percebem. Acho que é do meu espírito, que vai nas pessoas e fica com elas”, diz o homem de 65 anos. Percebe que o personagem é maior que o artista? “Claro. A arte é para uma elite intelectualizada que busca por ela e sabe que a gente existe. A maioria da coletividade da cidade não sabe que sou artista. Mas também nunca usei a arte como alavanca, porque ela é apenas uma escolha. Ser artista não é uma decisão, é um modo de vida, é como enxergo as pessoas e a vida.”

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Para o poeta e professor da Faculdade de Letras da UFJF, André Monteiro, “o último dândi de Juiz de Fora”. Para o sociólogo e professor das ciências sociais da UFJF Gilberto Vasconcellos, um flâneur de Baudelaire e Benjamin. “Ele dizia também que ‘como disse Nietzsche, quem ama anda'”, completa Ronaldo, “um outsider”, segundo ele mesmo. “Como diz um artista norte-americano, cujo nome não me lembro, minha função social é associal. Vivo da arte porque me alimento dela todos os dias. Financeiramente, claro que não. A arte, para mim, é o complexo da estrutura essencial de o ser humano estar no mundo.”

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Explorador da urbe, distancia-se das normas para mergulhar no breu. “Saio à noite, na madrugada, porque tenho uma curiosidade sem fim. Quero sempre saber como é o homem do tempo em que vivo. Só durmo em torno das 3h da manhã. A noite é um momento interessante para esbarrar com o humano, que está solto ali, sem compromissos de horário marcado, pronto para o diálogo. É uma coisa meio socrática essa de perguntar. Gosto de questionar, saber como é a vida de cada um, como cada um pensa, sem preconceitos e sem usar meu conhecimento para discriminar. Quero descobrir outras formas de presenciar a vida.”

Sem lenço

Solar, a infância já revelava o menino sombrio. “A gente descobre nossa existência através das nossas experiências do olhar. A estética sempre mexeu muito com meu lado pessoal, a questão do olhar, de querer saber o porquê e como as coisas podem se desenvolver pelo intelecto. Sempre tive muita curiosidade e buscava o conhecimento. Meus irmãos eram diferentes, mais pragmáticos, tinham uma visão mais realista da vida”, conta o segundo dos quatro filhos de um casal formado por um comerciante do Manoel Honório e uma filha de libaneses, dedicada integralmente à família. Não havia tecnologia. Tudo artesanal. “A gente se reinventava na infância. Eu era bom de bola, soltava muita pipa. Era moleque de rua, inventava brincadeiras, piques, carrinho de sabão para descer rua de pedra. Vivia como se estivesse numa cidadezinha do interior”, recorda-se ele, que passou por diferentes escolas, incluindo o Jesuítas, onde preparou-se para a universidade, lugar que descobriu não lhe pertencer. “As artes visuais foram permeando minha vida. Aquele aluvião do descobrimento das coisas.Foi evoluindo e se tornando uma escolha.” O jovem que “ia para a biblioteca no Parque Halfeld ler cultura geral” também se envolveu com movimentos culturais e chegou a fazer parte do Jornal de Bairro no São Mateus, onde havia varais de poesia na Praça Jarbas de Lery. Integrou movimentos de contestação, infiltrou-se em diferentes tribos, circulando e dizendo-se presente. “Sou uma pessoa muito ativa na cultura de Juiz de Fora, desde a década de 60”, confirma, lembrando de sua primeira mostra, uma coletiva ao lado de Francisco de Paula e Talarico, no Bar Santo Antônio, nos anos 1980. As pinturas expressionistas e as colagens, no entanto, foram fruto de uma educação do convívio. “Minha formação de artes foi pelo contato com os mais antigos, com o núcleo da (Associação de Belas Artes Antônio) Parreiras, como Dnar Rocha, Ruy Mehreb, Reydner, Renato Stehling. Tive uma amizade muito forte com o Dnar. Ele até fez uma cópia da chave do ateliê dele para mim. Tivemos uma relação muito intensa e próxima. Ele era pessimista também. Passávamos tardes inteiras conversando, não só sobre arte, mas sobre vida. Ele veio do interior, de Tabuleiro do Pomba, e passava experiências empíricas, do caipira. Viajava naquilo. Lembro que no inverno ele enchia a barriga e o sapato de jornais, para não sentir frio, pegar pneumonia. Era folclórico”, ri ele, que também tornou-se, como toda a sua família, muito próximo de Milton Nascimento.

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Sem documento

O que está dentro,e também o que está fora de Ronaldo formam o que está em seus quadros. “Toda experiência que tenho na vida me atinge. Todo sofrimento que, indubitavelmente, presencio, me atinge. Não que eu busque ela (a dor), mas é uma questão de existência, de reflexo do olhar. A dor é um efeito colateral das escolhas que fiz. Tenho um rosário de dores, que vão ficar comigo, e não há como deixar aberto. Há dores que devem ser sacralizadas”, alerta o homem que hoje escolhe fazer suas colagens em pequenos formatos. Grandiloquentes, só as reflexões. “Os grandes formatos fazia em oficinas de amigos, inclusive do Iran (moldureiro), nos fundos da loja da Fonseca Hermes. Meu trabalho não tem uma ordem, trabalho, sobretudo, mentalmente. Sem lugar definido. Onde pouso e acho que pode ser lugar, faço”, conta ele, homem de muitos amigos espalhados pela cidade – “tenho os amigos da manhã, que me ligam, os da tarde, os da noite”. Um dos mais hábeis representantes da arte povera (corrente crítica às pompas das artes) em Juiz de Fora, Ronaldo é formulador de conceitos. “O que as pessoas chamam de lixo são os objetos encontrados, o que teve serventia e continua a ter em outra semântica. São objetos despojados de valores estéticos e nomeio como elemento essencial de meu trabalho, como o Duchamp fez com o mictório, elegendo aquilo como um projeto de arte, trazendo outras questões para o olhar do ser humano. Ele era um irônico, um brincalhão, usava a inteligência dele para ridicularizar o próprio sistema da arte”, aponta, referindo-se ao mestre exposto em cada uma de suas obras. “Meu trabalho é uma extensão de mim”, afirma. “Das minhas cobranças, do meu rigor. Não faço para vender, mas porque o trabalho precisa corresponder ao que desejo dele. Não termino um quadro enquanto ele não me satisfizer, mesmo que esteja em transe.” Eis sua vida, noturnamente subjetiva. “Não tenho vida prática”, diz. Em algum momento, teve carteira assinada? “Nunca, jamais. Não posso com isso. Já tive carteira assassinada”, ri. Isso é ser associal, então. “Sou um ser sociável, não um ser social. O social é pragmático, que é o que rege a vida das pessoas. Não condeno isso, até porque a vida é uma sobrevivência, e é preciso se submeter a alguns regimes. Não me sinto melhor que elas. Os práticos têm valor, e talvez eu tenha sido incompetente para também ser”, explica ele, que também não se mercantiliza. “Não divido a vida em ser ou não pragmático. Sigo a ordem da minha estrela pessoal. Tem um poema meu que fala assim: ‘Nasci com uma estrela na testa/a testa o céu’. Quem dá o atestado de mim é o céu do meu ser, que é o meu cérebro”, reflete. O que te falta, portanto, Ronaldo? “O que é mais presente em mim.”

 

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