Todo livro carrega consigo a história que conta e a que representa. Cláudio Luiz da Silva carrega consigo as histórias dos livros. “O livro seminovo tem muito mais história em função do momento em que foi editado, do comportamento da época e pelo que representa hoje, na leitura e na comparação com o que é mais recente”, comenta o livreiro de 62 anos, 25 deles passados na Quarup, uma construção cheia de paratextos, entre cânones e desconhecidos, no meio de discursos. “O livreiro tem uma formação propedêutica, que é o cara que tem um pouquinho de conhecimento de tudo, sem ser especialista. Cláudio, quero um livro de história da comunicação! Então, tenho que saber um pouco. Quero um livro sobre engenharia mecatrônica! Quero um livro sobre física dos estados sólidos! Quero um livro sobre redes neurais! Tenho que saber. E essa é a ideia do fragmento, de construir a parede tijolo por tijolo. A condição sine qua non para ser livreiro, e não vendedor de livros, é ler. Leio muito sobre a história do livro, da tipografia, da cultura. Quanto mais informação tenho, melhor interpreto o que as pessoas precisam e querem.”
Pilares de páginas
Numa casa na Rua Padre Café de nome inspirado no romance de Antônio Callado editado em 1967 e cujas pilhas de livros parecem sustentar mais que os mais fortes pilares, Cláudio mantém parte de um acervo que contabiliza na casa dos 60 mil títulos. O “mofo da casa” dorme junto dele. “São as raridades que atendem bibliófilos e colecionadores. Livros que interessam a um público menor, mas fiel e que guardo onde moro”, conta o homem nos primeiros anos da adolescência foi operário da Cia. Fiação e Tecelagem São Vicente, enquanto estudava e pouco a pouco se apaixonava pelos almanaques. “Aos 15 anos, comecei a trabalhar com coleções e enciclopédias. Vendia aqui e acolá. Depois fui para o Exército e continuei ganhando um dinheirinho com isso. Quando saí, pleiteei um emprego na Viviane Livraria & Papelaria, que foi, nos anos 1980, uma das maiores da cidade. Passados seis anos, entrei numa instituição chamada Espaço Cultural Livros & Artes, que, na verdade, era uma grande usina de cultura. Lá funcionava uma livraria, o Cine-Teatro Humberto Mauro e uma galeria de arte. Na livraria aprendi tudo do mundo livreiro e editorial do país. Tive contato com autores, literaturas e gêneros do conhecimento. Na galeria tive contato com grandes nomes das artes plásticas na cidade. Após isso veio a Quarup, que nasceu das mãos do Rogério Teixeira e das minhas. Naquele momento já começamos a trabalhar no sistema on-line, ainda no site do Betinho, que chamava IBase”, recorda Cláudio, que hoje, sem sócios, mantém cerca de cinco mil livros cadastrados na internet, numa plataforma que reúne os principais sebos do país e onde o livreiro procura manter perfil singular, correndo à margem de concorrências. “O on-line, que de alguma forma facilitou o conhecimento e o contato. Vendo para pessoas que moram na Finlândia, nos Estados Unidos, na Argentina, em Xanxerê (Santa Catarina).”
Chão de escritos
Na terra batida em volta de casa, Cláudio exercitava o que aprendia na escola. “Estava sempre desenhando no chão, escrevendo. Naquele tempo, as ruas eram de terra batida. Inocentemente a gente brincava no meio do mato, buscava água na mina, subia em árvores”, conta ele, nascido no Bairro Dom Bosco. “Antigamente era a Serrinha, que não tinha nada do que vemos hoje. Era, até, uma região de certa forma inóspita, com muita mata”, lembra. “Desde pequeno sempre gostei de ler. Não sou um literato, mas sou um homem de literatura. E isso ajudou a me moldar. Sou um livre pensador”, diz o mais velho dos sete filhos de um casal formado por um pedreiro, que se tornou mestre de obras, e uma lavadeira. “Carreguei muita trouxa de roupa para ela”, recorda-se Cláudio, que entre uma tarefa e outra em casa, às voltas com os irmãos, lia revistinhas em quadrinhos e as revistas do Carlos Zéfiro – “Os livros eróticos que empolgavam minha geração, que era da imaginação, enquanto hoje é a da imagética”. Aos 28, ele se casou. Saiu da casa dos pais e teve o único filho, também Cláudio, que já lhe deu duas netas (Isadora e Helena) e com quem, hoje, divide o lar. “Toda a minha trajetória tem muito da insistência”, avalia o homem de cabelos grisalhos, sempre disposto a um dedo de prosa. “Digo, nessa altura da minha vida, que sou amigo do lixeiro, do catador de papeis, e também do prefeito, do presidente. Para mim, não vejo diferenças. Minha ideia é aglutinar. E cada um dá sua energia e seu calor. Todo encontro é extremamente importante não só para o crescimento pessoal como também para a casa. Aqui não tem balcão. Você entra, senta, olha seus e-mails no computador, toma um café na cozinha. De vez em quando alguém se habilita a fazer um pocket show, declama uma poesia, joga capoeira, ou apenas dá uma ideia. O tempo todo é assim. É um espaço onde as pessoas se oferecem sem buscas maiores, a não ser a convivência. Essa é uma casa aberta. E quero, inclusive, que a cada dia seja mais simples. A sofisticação está no simples.”
Muros de palavras
Nos cantos de casa, Cláudio ouvia o pai e o tio tocando instrumentos musicais sem, sequer, saberem ler partituras. Ritmista de Ministrinho, o pai era um amador, daqueles que amavam o que faz. O garoto aprendeu, então, a amar aprender. “Não gosto de rotina. Cada dia é um. Sou um vendedor de livros e também faço parte do Instituto Histórico (e Geográfico de Juiz de Fora), integro a comissão de mérito das medalhas Geraldo Pereira e Nelson Silva. Ainda faço avaliações de bibliotecas e obras, além de ter uma banca de livros na Faculdade de Letras da UFJF, o que me proporciona o contato com professores e alunos. Todos os dias faço algo diferente. E o que menos faço é exercitar a questão comercial. A ideia da Quarup sempre foi se transformar num ponto de encontro. Tudo tem uma histórias por trás”, defende ele, expoente da primeira geração do Movimento Negro Unificado e testemunha de muitas outras lutas sociais e culturais. “Vivi um tempo em que havia a censura, mas também uma verve cultural muito grande. As pessoas estavam nas ruas, subiam num banquinho e declamavam, poetas faziam varais. Existia um maior engajamento, justamente quando todo mundo andava de lado, olhando para o chão, como diz a música do Chico Buarque. Hoje, em tempos de democracias, todos podem, altivamente, contestar as autoridades. Essa geração de 1960, 1970 e 1980 trabalhou muito para quebrar paradigmas, soltando os grilhões que atavam as pessoas. Não havia o poder, mas havia o que dizer. Minha geração fez muito mais correndo muito mais riscos. A juventude hoje tem mais abertura. E tudo foi pavimentado pelas gerações anteriores, pelos intelectuais orgânicos que se encontravam nas ruas. Hoje a maioria dos intelectuais são pseudos-intelectuais e estão nos gabinetes, nas universidades, debaixo das asas do Estado, sobre o qual eles mesmos falam mal”, critica, ele próprio um intelectual orgânico, inspirado em palavras que mudaram o mundo: “Gosto muito do Martin Luther King. No mundo moderno, ninguém desencadeou um movimento de desobediência civil de tal importância quanto ele, só com o poder da palavra e da presença.”