O desenho surge num papel branco. Primeiro existe como linhas, depois ganha luz e sombra. No vitral funciona ao contrário. O vidro é todo preenchido de tinta, que, em sua retirada, faz surgirem as áreas de luz e sombra. Célio de Moura molha a ponta do pincel que seleciona, dentre tantos outros, e passa numa pequenina porção da tinta em pó que coloca sobre a mesa. “Na França existe uma empresa em que os químicos buscaram a mesma composição dos esmaltes dos séculos passados. Compramos hoje as tintas com a mesma qualidade das que pintaram os vitrais das catedrais históricas”, diz, referindo-se ao produto importado da marca Debitus. Também em vidro leitoso, a mesa tem luzes sobre o tampo, que quando acesas, ajudam na percepção do efeito das pinturas nos vidros. Mas é preciso observar à distância. E para isso, o homem instalou um espelho sobre o lugar de trabalho, que numa inclinação, ajuda-o a ver o material. “É como o artista pintando a tela. Ele não distancia para ver o trabalho, o que ele fez? Aqui vejo pelo espelho!”, comenta. Feitas as pinturas, o vidro vai para o forno, para vitrificar os desenhos. São partes de um projeto que primeiro surge no desenho do papel, depois ganha a tela do computador numa escala real que já considera a diferença de 1,7 milímetros entre um pedaço e outro. Nos filetes entram os perfis de chumbo, unindo um vidro a outro. Pequenos fios de estanho atuam na solda de cada perfil. Como um quebra-cabeça, as peças integram um módulo, que ao final, se encaixa numa estrutura de ferro criada por um serralheiro. Ao término, um ácido canadense é aplicado sobre o perfil de chumbo, escurecendo as linhas que, à distância, parecem sumir. Os desenhos delicados de Moura, criados com pincel ou com o ajuntamento de diferentes vidros, têm como grande aliado a luz natural. O artista cria com o sol.
Parte a parte
Brilhantes ficam os olhos azuis de Moura quando ele explica cada um de seus projetos. Enquanto ele se prepara para iniciar os vitrais retangulares e uma gigantesca mandala que ocuparão a fachada do Seminário Maior Nossa Senhora de Guadalupe, no Bairro Granbery, também cria os vitrais para uma igreja de Bom Jardim de Minas, representando passagens bíblicas como o Sermão da Montanha, o batismo e a ressurreição. O primeiro deles, sobre a multiplicação dos pães, foi entregue semana passada. “Sou religioso, sei muito da história, e isso ajuda”, conta. Moura havia projetado linhas geométricas atrás de Cristo, mas o padre questionou sobre a presença da multidão na cena. E o vitralista introduziu as pessoas numa perspectiva a emular um grande grupo. O serviço deve ser concluído somente em 2020. Minucioso, o trabalho requer tempo. Para fazer o maior de seus projetos, o vitral da Capela Santo Inácio de Loyola, no Colégio dos Jesuítas, Moura levou um ano. “Fazia, praticamente, 10 metros por mês. A cada dia, eu fazia cerca de meio metro”, calcula ele, que vivia numa fazenda em Guiricema, ao lado da esposa e dos dois filhos, quando, em 1998, soube do projeto na escola. “O projeto do Jesuítas, que tinha 130 metros quadrados, foi todo desenhado a mão, linha por linha. Foi meu primeiro grande trabalho. Tinham sete concorrentes, gente do Rio de Janeiro, São Paulo, Juiz de Fora, e eles fecharam comigo”, orgulha-se enquanto folheia os registros do trabalho nos livros “Arquitetura Moderna”, de Antônio Carlos Duarte, e “Jovens arquitetos”, de Roberto Segre. Com o dinheiro recebido pelo vitral de linhas modernistas, Moura construiu um galpão onde produz suas peças, comprou um computador e fez um curso dos programas Photoshop e Corel Draw, que permitiu a ele projetar virtualmente seus desenhos em tamanho real.
Parte arte
Desenvoltas, as mãos desenhavam desde pequeno. “Na outra encarnação, acho que já desenhava. Sempre gostei de desenho. Eu pintava telas antes de fazer os vitrais e no dia a dia fui me aprimorando”, conta Moura, para logo retornar aos anos finais da década de 1970. “Não entra nessa, não, senão vai ficar aqui o resto da vida!”, sugeriam-lhe os colegas quando o viam atuar com processamento de dados, com planos de analista de sistemas. Programador de computadores na Vale, em Vitória, Célio começou a pintar telas, até que surgiu uma exposição coletiva na Galeria Homero Massena, da Secretaria de Estado da Cultura, na capital capixaba. Inscreveu algumas de suas obras. “Na mesma semana, recebi um comunicado de que uma das telas havia sido vendida. O valor era o meu salário na Vale”, lembra. Era tempo de pensar em investir no talento. Mudou-se para Belo Horizonte, manteve-se na área, mas intensificou sua produção de pintura. “Durante o dia, eu trabalhava com lógica e, à noite, com arte. Pintava telas, e um amigo meu fazia vitrais aqui em Juiz de Fora. Um dia ele me pediu para fazer projetos para ele. Fiz e enviei pelos Correios. Não havia Whatsapp, nem e-mail, nem nada. Era 1977. Ele aprovava e me dava uma porcentagem sobre o valor do vitral. Dali a pouco, me pediu outro, e mais outro. Um dia perguntou se eu queria trabalhar com ele. Era o Vitrô, na Rua São Mateus, onde depois funcionou o Vitrô Musical Bar, do Duty Botti. Ali era o antigo Colégio Bicalho, que fechou as portas e passou a servir fazendo vitrais e, mais tarde, funcionou como um bar de jazz famoso. Ele parou com a empresa, e eu chamei os funcionários para integra a De Moura Vitrais, em 1982”, rememora Célio, que passou, assim, a ser reconhecido apenas pelo sobrenome.
Arte e ar
Referenciada, a arte de Moura remete à casa. Nascido em Visconde do Rio Branco, numa família de três filhos, era filho de uma dona de casa e de um fotógrafo que viajava pelas cidades fazendo retratos de diferentes famílias. Nas lembranças de Moura, o pai revelava as imagens no Foto Vicente, um famoso laboratório de Juiz de Fora, e depois retocava cada fotografia. “Ele fazia, com o pincel, a coloração dos rostos, complementava cílios para, finalmente, emoldurar em vidro bolha”, recorda-se o vitralista, que optou pelo curso de eletromecânica, onde teve as melhores notas na disciplina de desenho técnico. “Quando fiz o curso, complementei o lado artístico. Sem o desenho técnico, seria difícil acompanhar os engenheiros e arquitetos que encontro em reuniões”, aponta ele, que aos 20, partiu para morar em Ipatinga, Vitória, Belo Horizonte e só retornou quando recebeu o chamado dos vitrais. Autor de trabalhos na Igreja de São Sebastião, em Rodeiro, e também da Igreja de São Sebastião, em Belo Horizonte, além da de Santa Luzia, no bairro homônimo, em Juiz de Fora, e restaurador dos vitrais da Associação Comercial, do Forum da Cultura, do Edifício Brumado e de muitos outros endereços pelo país, Moura hoje divide o ofício com o filho, Gabriel, que se aprimorou na Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e hoje atua no corte dos vidros, importados e nacionais, e na montagem das peças. Já se cortou, Gabriel? “Muitas vezes!”, ri. A esposa, Fátima, também autodidata, ajuda a pintar, participa na definição das cores dos vidros e também atende o público. O outro filho, Léo, é o único que não compartilha do espaço rodeado de vidros, pincéis e tintas, mas divide com a família o interesse pelas artes, atuando como designer gráfico em São Paulo. Resistentes ao tempo, os vitrais. E também ao fogo, como demonstrou o incêndio na francesa Catedral de Notre-Dame, no último dia 15. Para derreter um vidro, explica Moura, é preciso que a temperatura chegue aos 1.200ºC. Para estourar, basta aquecer apenas uma das pontas. “Ser o calor for nele todo, o vidro suporta”, pontua, justificando a resistência dos vitrais do famoso endereço parisiense, que perdeu seu pináculo e suas rosáceas. “Vitrifico as pinturas num forno a 600ºC, quer dizer, até para descolorirem é preciso uma temperatura muito alta.”