Num vale em meio à Cordilheira dos Andes, há pouco mais de 2.500 metros de altitude está a pequena Otavalo. Pelas ruas, vielas e avenidas espalham-se barracas com tecidos, vestes e acessórios produzidos por grupos indígenas da região, configurando um dos maiores mercados a céu aberto do Equador. Nos descampados circundados pelos picos Imbabura e Cotacachi e pelos vulcões Mojanda ecoaram pela primeira vez os sons da flauta de Luis Alfonso Ramirez Montalvo. “Quando eu era pequeno, meu pai tinha bois e vacas. Depois da escola eu ia ver o pasto. Não tinha nada, era só silêncio. Comecei a tocar. Eu tinha 8 anos. Meu tio, que já morreu, foi quem me ensinou. Aprendi mais e mais. Lembro de ter 9 e 10 anos e ver o boi e, enquanto passava o tempo e terminava o dia, eu tocava”, conta ele, aos 50. “Hoje, na hora de tocar me saem lágrimas. Porque estou longe. Dá uma tristeza porque não estou com minha família. Quando estou tocando, eu viajo”, acrescenta, mostrando a pan flauta que comercializa em uma barraca montada no Parque Halfeld, onde também expõe chaveiros e outros objetos tradicionais de sua cultura. No coração de Juiz de Fora, Luis ergueu sua pequena Otavalo.
Enquanto conversa, ouve-se tocar ao fundo canções famosas, hinos religiosos e músicas sertanejas, tudo executado em flautas. “É um instrumento muito tradicional no Equador. Essa aqui”, diz ele, apontando para sua criação: “Foi feita com bambu de lá. Os bambus brasileiros não fazem a mesma coisa. Tem a pan flauta, a flauta nativa, a quena, o rondador, a tarka e mais outras, todas feitas em bambu ou madeira. O bambu tem uma espécie de canudo. Ele vem fechado, então cortamos uma ponta e afinamos por cima. O tamanho é que faz o som mudar. A afinação se faz pelos buracos.” Ao lado de coletâneas de cantores como Nelson Ned e a paraguaia Perla estão os discos do Purik, “os caminhantes dos Andes” em quíchua, língua indígena falada em algumas regiões de países da América do Sul. Com três de seus sete irmãos Luis formou o conjunto, que há três anos não grava nada. Enquanto dois vivem em Porto Alegre e outro estabeleceu-se em Curitiba, a alternativa é seguir carreira solo. “Faço música ao vivo, tenho CDs gravados e sempre faço um clipe e coloco na internet.”
Andante
Os cabelos de Luis Ramirez são pretos e compridos. “É natural”, diz. De seu pai e irmãos, é da mesma forma. É normal. Como ter o dente superior incisivo central de ouro. “No Equador é normal. Aqui, quando me veem tocando, perguntam se sou cigano. Mas para meu povo ter dente de ouro é como usar um anel, um relógio, todo mundo tem. É uma cultura nossa. Às vezes penso em tirar, quando pensam que sou cigano”, conta ele, que colocou o dente pela primeira aos 16. Mais tarde tirou, e há 15 mantém o adereço. No espelho se encontra e encontra a saudade. “Sou índio e inca. Antigamente meu povo era como o povo do Amazonas, que mora na floresta. Falo quíchua, espanhol e português mais ou menos. Nasci em uma comunidade. Meus avôs eram do mato mesmo, mas meu pai e minha mãe foram morar em uma comunidade. Eles só se alimentam da natureza. Quando me casei, comprei um lote e construí uma casa na cidade”, recorda-se, certo do abismo que existe entre as realidades dos povos tradicionais nas Américas. “Os índios no Equador são mais avançados. Conheço a vida dos índios aqui, morei seis meses em Porto Alegre, no mato mesmo, e vi que tudo é muito diferente. Os índios evangélicos me chamaram para tocar lá e para ficar. Eles me tratavam muito bem, mas depois tive que viajar. Os índios que moram aqui não têm a oportunidade que temos lá. Mas diferente daqui, no Equador não há nenhum apoio do Governo. Aqui, pelo menos, tem a Funai”, comenta ele, que estudou até o quinto ano e seguiu os passos dos pais na venda de artesanatos. Os chaveiros, bolsas e outros objetos de sua banca são feitos por familiares que ainda estão no Equador. As pequenas lhamas de lã foram feitas pelos sobrinhos pequenos. “Às vezes viajo para buscar”, diz o homem, um legítimo caminhante que partiu dos Andes. “Já morei em Porto Alegre, São Paulo, Santa Catarina, Curitiba, Belo Horizonte. Viajei por muitos países: Paraguai, Uruguai, Argentina, Bolívia, Peru, Panamá. Agora moro aqui”, sorri.
Amante
As ruas de Juiz de Fora seriam apenas palcos, mas se tornaram caminho constante. Integrante de um grupo de oito equatorianos, Luis tocava flauta e dançava no Parque Halfeld, quando percebeu a oportunidade de se redimir por uma frustração amorosa que o levou, há 20 anos, a sair de sua Otavalo. “A vida lá era normal, como aqui. Eu trabalhava com mercadorias, artesanatos, e gostava de tudo, mas como me separei, resolvi sair”, resume ele, cuja desilusão tornou-se passado na calçada diante da Avenida Rio Branco. “Um dia apareceu uma menina. Naquele tempo ela tinha 18 anos. Eu era divorciado e nos apaixonamos. Com ela morei. Eu e meus irmãos ficamos aqui de cinco a seis meses. Meus irmãos tinham que viajar para o Equador, porque o visto estava terminando. Como eu estava namorando, fiquei com ela e vivemos juntos mais de três anos. Moramos no (Bairro) Floresta. Continuei fazendo música e viajamos por quase todo o Brasil. Depois não deu mais certo e nos separamos”, conta. Por algum tempo Luis morou em Porto Alegre, oito meses depois retornou para trabalhar no Calçadão, das 19h às 21h. Nesse período conheceu uma nova mulher, com quem, de fato, se casou e, recentemente, mais uma vez, se separou. No apartamento no Bairro Vitorino Braga, ele mora sozinho. “Fiz muitos amigos por aqui. Quase todo mundo me conhece. Trabalho aqui no Parque Halfeld, na feira em frente ao Santa Cruz Shopping, na praça do Manoel Honório e viajo por essas cidades pequenas da região.”
Avante
Os dias de Luis sempre começam cedo. Às 4h ele se levanta, se banha, faz café, arruma a casa e às 6h30 sai de casa, rumo ao Parque Halfeld ou a outro destino. Retorna após as 16h e encerra sua rotina com a TV ligada. Da cultura equatoriana, pouco consome. Da culinária, muito menos. Luis gosta de comer arroz, feijão, angu e frango com quiabo. “Uma coisa que não gosto é pizza. E não consigo comer direito macarrão com queijo, passo mal”, diz. Religioso como toda a família, há quatro anos não frequenta a igreja, desde que sofreu um terrível assalto em casa. “Levaram muita coisa, mercadorias, tudo”, lembra. Mas não lhe levaram a fé. Deus e o dedo apontando para cima ocupam muitas de suas frases. Assim como a emoção lhe toma todo o corpo quando é questionado sobre o lugar de estrangeiro. “Sempre volto. Às vezes uma vez por ano, ou de dois em dois anos. Antigamente ficava um mês, porque tinha amizades para todos os lados, mas eles se casaram e mudaram. Então hoje fico de dez a 15 dias. Viajo só para abraçar minha mãe, meus parentes. Às vezes penso em voltar, ter uma esposa lá, minha casa, minha vida. Outras vezes quero ficar aqui por toda a minha vida”, diz. E finaliza: “Eu me sinto brasileiro.”