Pelas ruas da cidade, faça chuva ou sol, Antônio José Alves da Silva arrasta mais de 300kg. Em seu carrinho, vermelho de grades altas, o homem franzino, de aparência frágil, transporta papelão, plástico, garrafas e outros materiais passíveis de serem reciclados ou consertados. Vazia, a caixa de metal com duas rodas pesa 165kg. “As dores só aparecem quando o corpo esfria. Aí eu sinto. Mas já me acostumei”, diz ele, que carrega na mão esquerda a lembrança de um dia pesado demais. “Não aguentei o carrinho, e a mão quebrou. Não voltou mais.”
Na memória Antônio também carrega a imagem do carrinho empinado num morro próximo da Igreja Melquita, em dia de chuva. Recebeu a ajuda do mesmo homem que hoje lhe oferta almoço todos os dias. “Esse rapaz todos os dias me dava R$ 10. Aí ele falou: Vamos fazer o seguinte, meu restaurante é aquele lá, então, todo dia você passa lá e pega comida comigo”, conta Antônio, que nas ruas encontra os dois lados do bicho-homem. “Uns xingam, outros buzinam.” Há os que lhe enxergam e os que fingem não ver.
Diante do galpão que lhe compra os recicláveis, na Floriano Peixoto, Antônio diz ter recebido R$ 40 pelo dia de trabalho. Uma quarta-feira, dia bom como segunda. Do Borboleta, onde mora há mais de duas décadas, ele sai por volta das 5h. Chega à Floriano às 6h para pegar o carrinho. Sai rumo ao São Mateus. Na Rua Mamoré, costuma organizar e selecionar o material recolhido. Limpa a calçada quando vai embora. “Estou aqui há uns 10 anos. Há 20, fiquei desempregado e comecei a catar latinhas, mas começou a cair o preço, e eu resolvi catar papelão, para ver se dava uma renda melhor.”
Enquanto alguém se põe a reclamar
“Já trabalhei de servente”, conta Antônio, “Fiz serviço de montagem em empresa de evento, trabalhei na Ferreira Guimarães, mexendo com alvenaria. Trabalhei na Quinet Araújo, com obra”, enumera. Não quis ter carteira mais?, pergunto-lhe, no fim do expediente, diante do galpão de recicláveis. “Hoje estou com 57 anos. Ninguém me dá serviço mais”, diz ele, casado há 25 anos com Marisa, com quem teve Antônio Carlos, de 21 anos, e Sabrina, 16. “A menina estuda, e o menino trabalha numa fábrica de jeans.” Nascido na Rua Maria Perpétua, no Bairro Ladeira, de onde saiu com 10 anos, Antônio criou-se no Santa Luzia, ao lado dos sete irmãos. Dois deles, mais o pai, já se foram.
Enquanto a hora não chega
A escola Antônio abandonou ainda na quarta série. “Eu era muito levado, matava aula, mas sempre trabalhei. Lembra da Fábrica São Vicente? Com 13 anos, eu carregava almoço para o pessoal que trabalhava lá. Eu pegava na casa deles, com a mãe deles, e levava na hora do almoço. Carregava almoço para obra no Bom Pastor também. Sempre trabalhei”, orgulha-se o homem cujo material de trabalho é vendido por quilo e vale centavos. O quilo do papelão vale R$ 0,15. O quilo do PET sai por R$ 0,80. Sem férias, sem 13º, sem seguro e com a responsabilidade de não poder sequer adoecer, como faz? “Vou remando. Tem um pessoal que me dá força. Tem um senhor que mora na (Avenida) Rio Branco com a Independência (Avenida Itamar Franco) e todo mês me dá uma cesta básica”, responde. Vai aguentar até quando? “Até quando Deus falar que chegou a hora.”
Enquanto não termina a obra
De segunda a sexta, o trajeto de Antônio é praticamente o mesmo. São gastos cerca de seis quilômetros. Aos sábados, ele recolhe recicláveis na Fábrica de Doces Brasil, na Rua Marechal e na Avenida Sete. Aos domingos, é vendedor na Feira da Avenida Brasil. “Levo as coisas que arrumo na rua. Coisas tipo peça de computador, televisão de tubo, sapato, tênis, cabos, celular com a tela quebrada”, conta. “Não adianta pedir muito, senão volta com as coisas para casa” completa ele, que todos os dias retorna, às 18h, para a casa, carregando duas mochilas. Numa vai a comida ofertada pelo restaurante. Na outra, vão as sucatas para domingo. Todos os dias Antônio dá vida ao lixo do outro. Com o que não serve a alguns ele construiu a própria casa. “Fiz meu barraco, só não está acabado direito. Botei laje só no banheiro, com o dinheiro daqui e de montagem de evento. Quando o carnaval era na Rio Branco, eu ajudava na montagem e depois caía no papel. Hoje trabalho com papel o dia inteiro.” Cerveja e cachaça, diz, só depois do trabalho, nos fins de semana. Não pode misturar para que não misturem. “Tem uns que catam para usar droga ou tomar cachaça. E tem gente que pensa que todos (os catadores) são iguais. Mas não pode tirar um pelo outro”, defende, com as duas mochilas nos ombros, 13 horas depois de ter tirado o carrinho do galpão, de banho tomado, agasalhado e sorridente, pronto para voltar para casa.
Legenda Antônio é catador há 20 anos e faz, em média, seis quilômetros por dia a pé, carregando um carrinho que, vazio, pesa 16