Não foi entregue a bruxa alguma. Sequer viveu encastelada. Liliam Márcia Santos nasceu na zona rural de Rio Pomba e, antes de completar 1 ano, já morava no Bairro Vila Ideal, em Juiz de Fora, com a mãe e nove irmãos. Ao completar 12 anos, não foi trancafiada numa torre alta sem portas ou escadas. Antes disso, Liliam já conhecia as ruas e o peso do trabalho – aos 11 anos, era manicure no salão da irmã. Não vivia entediada, cantando para o ponteiro do relógio girar. Durante a adolescência, enquanto estudava, Liliam empregou-se numa fábrica de calçados – “Saía de lá fedendo a cola, dos pés à cabeça, com um caderno e uma sacolinha, sem dinheiro para comprar chinelo, e ia para a escola”. Também exerceu o ofício de vendedora e gerente em lojas de roupas. Não sofreu com a solidão. Para isso, Liliam nem mesmo tinha tempo, tamanhas as responsabilidades. Em comum com a Rapunzel dos contos de fadas está a força que o cabelo lhe deu. Os seus fios e o de milhares de mulheres. Todas Rapunzel.
“A identidade está no cabelo. E é a primeira coisa que a gente olha. Sempre falo com minhas clientes: se tiver com o cabelo bonito, a roupa velha fica nova”, ri a mulher que com a fama de Rainha do Mega Hair encurtou o nome, tornando-se apenas Lilian (com N no lugar do M) Santos. “O mega hair lida com o emocional das mulheres. Recebo muitas que estão com a autoestima baixa, que engordaram, ou se separaram, ou perderam filho. Já ouvi muitas histórias. Elas veem porque querem se sentir vivas”, conta ela, que também atende homens na loja cujas paredes da recepção são emolduradas por madeixas em diferentes tons. “A calvície no homem hoje incomoda muito. Eles chegam com medo de que riam deles, mas faço um corte moderno e eles se surpreendem. Hoje eles são muito vaidosos também”, avalia a dona de fios dourados e habilmente mantidos como cartão de visitas. “Era morena, do cabelo preto e cacheado. A vida me fez ser loura. Hoje sou referência de louro”, ri. Em algum momento abre mão da vaidade? “Já acordo maquiando, colocando cílios…”. O cílios não são seus? “Sou toda montada. Uma travesti. Sobrancelha, unha, silicone, barriga, cabelo. A mulher pode ser tudo.”
Como uma leoa
Carregando uma única mala e uma carteira quase vazia, Lilian desembarcou em São Paulo, aos 19, para ganhar dinheiro comandando uma padaria por sugestão de um irmão, que anos antes havia feito o mesmo trajeto. “Nasci para ser vendedora. Acho que veio do meu pai, que era negociador, vendia tacho na roça. E dos meus irmãos também: um tem fábrica de móveis; um é estofador; o outro saiu daqui com uma mala e um cheque sem fundo, virou mendigo, apanhou na rodoviária, vendeu laranja na estrada, comprou uma kombi para vender laranjas, depois um hortifrúti e hoje tem cinco padarias em São Paulo”, pontua a mulher, que, diante dos pães, certificou-se que seu caminho era outro. “Dentro de mim sempre tive a essência de ser cabeleireira e empreendedora. Tenho visão, não é à toa que hoje tenho uma fábrica de perucas e um método de mega hair, o Invisible Lace, que vendo on-line para o mundo inteiro. Mês que vem estarei na maior feira do mundo de cabeleireiros”, orgulha-se ela, que ao retornar da maior metrópole brasileira montou um salão com a irmã e uma amiga. “Fazia mechas, progressiva, relaxamento, cortes, fazia unha, depilação. O que aparecia eu pegava. Fui virando uma referência em mega hair. Depois queria ampliar e modificar, seguindo meu estilo. Acabei com a sociedade e deslanchei. Antes de mexer com mega hair, eu já usava, sempre admirei, porque lida com a autoestima. Comecei a usar por vaidade, sempre tive pouco cabelo e quis colocar o mega para dar volume. Hoje ele virou moda. Não é nem tanto necessidade. Todas as vezes que tiro meu mega e vejo o pouquinho de cabelo que tenho, quando boto de novo, me sinto poderosa, uma leoa”, diz, aos 37, a profissional que, mesmo acompanhada por uma agigantada equipe, segue uma rotina pesada, das 10h às 22h, todos os dias. “Amo o que faço, estar aqui dentro. Se pudesse, viria até aos domingos. Eu me descobri fazendo isso. O tempo todo fico pensando no negócio.”
Como uma operária
Exercitando uma paciência incomum, contrastante com a ansiedade de uma empresária atenta a tudo e a todos, Lilian aprendeu sua lição mais importante quando o desgaste lhe parecia intransponível. “Comecei trabalhando com mega de queratina, que funciona como colinhas quentes, de tufinho em tufinho. Cada cabelo demorava cinco horas para ser feito. Chegava às 8h e saía às 3h da manhã. No início era um por mês, depois passou a um por dia. Dois, três, quatro, cinco por dia. Teve tempo que chegava a sete por dia. Aí arrumei outras pessoas para me ajudar. Mas meus dedos ficavam todos feridos, com bolhas, sangrando. Eu chorava de dor. E pedia a Deus para me ajudar, me dando uma luz para descobrir algo. Um dia, num congresso, vi um homem explicando sobre as telas. Cheguei a Juiz de Fora e sentei com a mulher que fazia o ‘tecimento’ dos cabelos para testar. O ‘Invisible Lace’ (método que desenvolveu) é uma tela com micropeles, que são coladas e não danificam o cabelo. A cliente, antes, mudava de dois em dois meses. Hoje, dura um ano”, explica a profissional, que tem entre suas clientes a cantora Kelly Key e a dançarina Scheila Carvalho. Quinzenalmente, Lilian viajar para o Rio de Janeiro, para atender num salão da Barra. “Hoje também dou cursos, ensinando o método e credenciando as pessoas a trabalharem com ele”, comenta a dona da assinatura numa linha de cosméticos que vai de xampus a hidratantes. “Como o mega hair é um cabelo morto, que não está no couro cabeludo, as clientes reclamavam que o cabelo embaraçava, não desenvolvia e estava emborrachado. Uma indústria de cosméticos, que me vendia alguns produtos, acabou me convidando para desenvolver uma linha, por eu ter um nome forte nas redes sociais”, recorda-se ela, com quase cem mil seguidores no Instagram.
Como uma artista
Resgatando o passado do qual não se permite esquecer, há alguns meses Lilian reuniu, numa festa, 20 amigas dos tempos de escola. Queria oferecer-lhes momentos de risadas, nostalgia e a certeza de que é possível escrever outro futuro. Da mesma forma, faz com algumas mulheres que se sentam à sua frente buscando no cabelo a força que o câncer lhes tomou. “Elas veem, fazem avaliação. Quando volto, sento elas na cadeira, viro de costas para o espelho, começo a contar histórias, tudo para que não sintam. Vou cortando, limpando o chão, e não deixo ela sentir. Quando vira, já está de peruca”, diz ela, rodeada por fios de diferentes origens e preços. “Tenho cabelos do Sul do Brasil, da Índia, da Suíça. O brasileiro é o mais caro, porque é mais difícil de conseguir”, conta a dona de uma fábrica com três funcionárias localizada no Jóquei Clube, bairro onde reside com o filho e o marido. Cabelos que deram a força para conquistar o conforto com que sempre sonhou. “Eu desejava ter algo para ajudar minha família”, emociona-se. “Imagina: Éramos dez irmãos vindo da roça, não tínhamos nada, só o dia, a tarde e a noite. Meu pai mexia com fogos, fazendo tachos. Minha mãe era cozinheira. Quando chegamos, meus dois irmãos mais velhos foram trabalhar como caminhoneiros. Sempre fui sonhadora. Queria ser artista. Em teatro, eu me destacava, concurso eu ganhava, e desfile, também”, relembra, demarcando a mulher vaidosa que sempre alimentou. Onde planeja chegar? Talvez já tenha chegado, segreda. Não fiz faculdade, só tirei o ensino médio enquanto trabalhava. Não tinha saída: ou meu negócio dava certo ou dava certo. Hoje colho, mas também trabalho muito. Quero franquear meu salão e meu método. Já tive propostas de dois investidores, mas não tive coragem, por medo de ficar na mão deles. Hoje vamos sair daqui para uma loja na Floriano Peixoto, com uma clínica estética e um salão de cursos, para virar o padrão das futuras franquias. Mas tudo, ainda, é feito com muita dificuldade. Quanto maior o sonho, mais suor. Não nasci para desistir.”