Nunca viveu de música, José Almada Moreira. Viveu da música. “Sempre tive meu emprego”, conta ele, Zezé, do pandeiro, do carnaval, do samba. “Em função de trabalhar, nunca fui boêmio. Bebo uma cervejinha, e de vez em quando uma cachacinha, mas nunca direto. Fumar, fumei por uns três anos logo que incorporei no Exército, mais por influência, mas logo parei em função da garganta. Um amigo meu, o Sandoval, que era espírita, me influenciava para que eu não ficasse bebendo. Naquela época, as drogas, que sempre existiram, ele falava para eu não mexer, que não era para mim”, conta o militar lotado no 17º Batalhão Logístico e aposentado em 1993. Parou de trabalhar, pararam os desfiles de escolas de samba, mas Zezé manteve-se firme. Este ano ajudou a compor o samba da Unidos de Barrabás, de Rio Novo, e dos blocos juiz-foranos Domésticas de Luxo, Dondocas da Vila, Beco e Pagodão dos Clubes. Também participou do concurso na Portela, mas não emplacou.
Quando começar a folia, em casa Zezé não ficará. “Vou brincar nos blocos. Estou para parar com o carnaval há muito tempo. Às vezes fico chateado com alguma coisa e ameaço parar, mas chegam os convites e eu não consigo recusar”, comenta o homem de 75 anos, completados no último dia 8. A festa é neste domingo, 20, a partir das 11h, no MHall com uma grande roda de samba, na qual ele também cantará. Ao seu redor estarão a esposa, Neide, os sete filhos – o mais velho tem 47 anos, e o mais novo, 21 -, frutos de três relacionamentos, oito netos – entre 30 anos e 1 ano e 2 meses -, e um bisneto. Gerações que Zezé influenciou com o amor ao samba. “A Débora (filha) gosta, tem um vozeirão, mas é preguiçosa. Todo mundo elogia ela. O Júnior, o (filho) mais novo, faz parte com ela do Come Quieto!”, conta ele, há três anos diagnosticado com a doença de Parkinson. “Faço acompanhamento e venho administrando, mas é uma coisa que inibe muito. Por mais que os colegas digam que não dá para esquentar a cabeça, não consigo, porque eu que sempre fui ativo, tenho minha vaidade. Mas vou levando. Uma hora ou vai fechar curto ou vai dar tudo certo”, diz, aos risos. “Uma amiga minha, a Nancy de Carvalho (primeira porta-bandeira da cidade, morta em 2017), costumava falar: ‘Agora estou numa idade que não devo satisfações a ninguém!’. Eu hoje concordo.”
‘Ao som alegre da sanfona e do pandeiro’
Pequeno, o menino José seguia com o pai, o seu José Eletricista, funcionário da Companhia Mineira de Eletricidade, para fazer música. “Ele tinha um grupo de amigos, daqueles senhores mais antigos. Havia quem tocasse sanfona, violão e meu pai tocava pandeiro. Eles se reuniam à tarde, normalmente nos fins de semana, em um botequim e faziam rodas de calango, tocando modas de viola. Fui criado ali. Meu pai versava e eu ficava ouvindo. Comecei a tocar pandeiro e a participar”, lembra. A mãe, dona Dulce, ficava em casa, cuidando dos cinco filhos. Na igreja iam todos juntos, para a Metodista, no Parque Halfeld. Até que a família conheceu a Igreja Adventista do Sétimo Dia. “Quando meu pai se converteu e passou a seguir a igreja, se afastou desses grupos e passou a ficar mais ligado a hinos”, afirma Zezé, que, praticante, integrava os corais religiosos, mas na adolescência começou a se afastar pouco a pouco. Nascido no Costa Carvalho, cresceu no São Benedito, onde ficava a tradicional Castelo de Ouro, uma das primeiras escolas de samba da cidade. “O amor pela música começou a fluir até que, em 1964, incorporei ao Exército e comecei a tomar decisões diferentes das dos meus pais. Foi então que comecei a frequentar a Castelo de Ouro. Fui ser ritmista e, um dia, reuni com uns amigos meus em um botequim e fomos fazer um som. Eu tocava pandeiro naquela época. Participei, cantei e em uma dessas um compositor já falecido, o José Benedito Martins (Bené, que lhe deu o apelido), que saiu da Juventude Imperial e foi para a Castelo de Ouro, me convidou para ser intérprete. Comecei mais por curiosidade. Em 1971 puxei meu primeiro samba na avenida, ‘Brasil de três raças’, do Mamão com o Hégeo Pontes. Fui o primeiro intérprete de avenida em Juiz de Fora. Até então os sambas eram montados e quem cantava era o grupo de compositores com as pastorinhas. As mais fortes aqui eram a Feliz Lembrança, com o Nelson Silva, e o Turunas, com o Ministrinho. Quando saí chamei muita atenção, porque as pessoas achavam que a Castelo havia trazido alguém do Rio para puxar”, conta o compositor e intérprete, nunca assistido pelos pais. “Meu pai não falava muito, mas minha mãe falava. Quando ela soube, eu já estava com certa fama. O pessoal do bairro comentava e alguns jornais já divulgavam. Ela soube por vizinhos: ‘Dona Dulce, o Zezé está famoso!’ Ela me falou: ‘Ah, meu filho! Infelizmente!’. Mas eu disse para ela que era uma coisa que eu gostava de fazer, faço com coração tão aberto que não estou pecando diante de Deus. No decorrer da vida, ela sempre me lembrava: ‘Meu filho, você tem que voltar para a igreja! Tem que voltar!'”, lembra Zezé, que nunca voltou. Hoje vai à missa, de vez em quando, com a família e simpatiza com o espiritismo de Allan Kardec. Em seu primeiro samba, “Festa folclórica”, de 1972, louvou tradições como cateretê e candomblé. “Olha a roda de samba, o batuquejé, tem folia de reis e fandango, calango tango, maculelê”, cantou. “Esse foi o primeiro samba com que concorri na Castelo de Ouro. Comecei minha trajetória lá e tive um momento que me marcou muito na Turunas. Passei pela Juventude Imperial, ganhei três vezes, inclusive com o Flavinho da Juventude, por ‘Zumbi, Rei negro dos Palmares’. Na Feliz Lembrança estive nos últimos tempos. Também tive a oportunidade de passar pela Partido Alto e pelo Ladeira e em outras escolas do primeiro grupo”, recorda-se ele, que ganhou sambas em diferentes escolas de Juiz de Fora e também em outras cidades da Zona da Mata, testemunhando toda a história dos desfiles oficiais na cidade.
‘Qual um rio a desfilar’
Jovem, Zezé tinha 22 anos quando assistiu ao primeiro desfile oficial das escolas de samba de Juiz de Fora e viu o campeonato histórico da Feliz Lembrança com sua “Mascarada Veneziana”. “Vi tudo o que aconteceu, do ápice à queda. Os carnavais do (prefeito Antônio) Mello Reis, quando o desfile foi considerado o segundo melhor do Brasil, eram muito bonitos. Tinha mais sociedade, o povo abraçava aquilo. Para se ter uma ideia, os concursos de samba-enredo tinha o mínimo de 20 ou 25 sambas concorrendo, e as quadras ficavam tão cheias que tinham filas nas portas. Teve um ensaio do Turunas, com show do Agepê, que a cerveja acabou. O patrono da escola ligou para o representante da Brahma e ele falou que em Juiz de Fora não tinha cerveja, mas vinha uma carreta do Rio indo para Belo Horizonte. Ele falou que se o patrono convencesse o motorista, cederia alguns engradados para a quadra. Ele, então, mandou um pessoal ir para a BR-040 esperar o motorista e acabou comprando toda a carreta e descarregou na Turunas. O consumo era muito grande, e o movimento nas quadras era constante”, lembra Zezé, intérprete e compositor de melodias. “Os parceiros, os canetas nervosos, faziam as letras e eu colocava a melodia”, explica o homem que também integrou a banda Black Samba Show e por 25 anos fez parte do Bacharéis do Samba. “Às vezes saía para tocar em alguns lugares dessa área toda por aqui e já levava minha farda na mochila. Voltava e às 7h já estava em serviço”, diz. “Nessa convivência com os bons carnavais de Juiz de Fora, a época de ouro, fui muito assediado pelos diretores de escolas para cantar o samba na avenida. Quando passava o comando, alguns comandantes já eram avisados a meu respeito, de que era fim de ano e não dava para contar muito comigo por conta da preparação do carnaval. Aqui tinha um coronel, o Félix, que era relações públicas do quartel general e era muito envolvido com a cultura, com o carnaval especialmente. Ele era ligado à Unidos dos Passos. Ficamos muito amigos. Quando chegava a época do carnaval, ele ligava para o comando determinando que me tirassem da escala de serviços. Criava ciúme nos amigos, que depois se acostumaram. Eu ficava fora da escala de carnaval, que era mais rígida. Em compensação, no Natal e no Réveillon eu sempre trabalhava, não tinha jeito”, conta, aos risos. No último desfile oficial das escolas de samba da cidade, em 2017, Zezé viu reeditado “Exaltação ao Rio São Francisco”, de 1977, pela Mocidade Alegre. O mítico samba – “Hei, hei vaqueiro é hora de passar, sacrifica o boi cansado pra boiada se salvar” – foi gravado por Elza Soares em 1979 no disco “Senhora da terra”.
O destino da Portela
Adulto, mas já aposentado, pai de seis filhos e avô, Zezé resolveu realizar o grande sonho de envolver-se com a Portela do coração. “Tive a oportunidade de ter sido transferido para o Rio de Janeiro, mas não fui por conta de família. O primeiro contato direto que tive com a ala de compositores cariocas foi em 1995, quando já estava na reserva. Naquele ano tive a oportunidade de conhecer um senhor de Três Rios, que se mudou para Juiz de Fora e começou a fazer contato com escolas daqui. Ele já era ligado à Portela e fez contato com compositores daqui e resolveu convidar alguns para participar de concursos na ala de compositores da Portela. Sempre fui portelense. Concorremos por três anos, de 1996 a 1998. No último ano batemos na trave. Fomos para a final com o Noca da Portela e ele ganhou. Em 1999 a Portela saiu com o enredo ‘Trabalhadores do Brasil – A época de Getúlio Vargas’, eu, o Edynel, o Edinho, o Aílton e o Amilton fizemos um samba. No dia do lançamento do samba, levei o Moacir do Cavaco para tocar com a gente e, enquanto passávamos o som, os diretores saíram da sala e pararam para ouvir a gente cantar o samba: ‘Meu Brasil-menino/ foi pintado em aquarela/ fez do meu destino/ o destino da Portela’. Fomos para a noite de apresentação e na época tinham 84 sambas participando. Nós vencemos e eu saí cantando o samba, fazendo parte d’Os Cangalhas, que apoiavam o intérprete oficial”, recorda-se sobre um dos momentos mais emocionantes de sua vida. O desfile não foi bom, mas o samba foi um dos responsáveis por não rebaixar a tradicional escola. “Foi praticamente inédito ver um samba no Rio ser composto só por mineiros. As outras alas das outras escolas ficaram gozando, e isso criou uma animosidade. De lá para cá existe certa resistência”, lamenta ele, que ainda assim continua a disputar. Sua última criação, reverenciando Clara Nunes, julga ter sido uma das mais belas. “Costumamos receber o tema em junho ou julho e trabalhamos para apresentar gravado, em três cópias. Precisamos contratar o intérprete, tem o trabalho em estúdio. Hoje, para ter visibilidade com um samba no Rio é preciso ter um caixa de no mínimo R$ 80 mil. Implica muita coisa, como ter um palco muito bom, com um ou dois intérpretes oficiais e o apoio”, pontua Zezé, testemunha das mudanças em Juiz de Fora e também fora daqui. “Hoje houve um esvaziamento que culmina nesses dois carnavais consecutivos sem os desfiles de escolas de samba. Hoje os sambas foram diminuindo, porque passaram por uma desvalorização muito grande. Antigamente era quase obrigatório presentear com um LP dos sambas-enredo. Os sambas eram mais poéticos, com letras mais descritivas”, avalia o homem que vive como a cantar Paulinho da Viola: “Eu canto samba, porque só assim eu me sinto contente. Eu vou ao samba, porque longe dele eu não posso viver. Com ele eu tenho de fato uma velha intimidade, se fico sozinho ele vem me socorrer. Há muito tempo eu escuto esse papo furado dizendo que o samba acabou, só se foi quando o dia clareou.”