“Eu sou de Minas Gerais, Barbacena. Minha família vive na Serra da Mantiqueira, alguns em Santos Dumont. Todas as férias que eu tirava, seja quando estava tocando no Rio ou fora do país – estive 13 anos na Europa -, ao voltar, sempre caía aqui em Juiz de Fora. É um caso sério essa cidade comigo. Parece que ela me puxa”, disse Toninho Oliveira, pianista de 83 anos, “mineiroca”, por ter o Rio de Janeiro marcado em sua história junto ao surgimento da bossa-nova. Nos encontramos no início da tarde no restaurante Brasão, Avenida Rio Branco com Parque Halfeld. Dois cafés de cortesia e um papo que ainda não acabou. Toninho estava de boina e cachecol, segurando um quadro emoldurado com uma breve biografia sobre ele e uma foto se apresentando ao lado da cantora norte-americana Liza Minnelli.
Foi no Beco das Garrafas, em Copacabana, próximo ao Posto 6, onde morava com um tio na Galeria Alaska, que teve o convívio diário com o movimento musical brasileiro do momento. “Ali foi onde nasceu a bossa-nova. Foi ali que surgiram Sérgio Mendes, Elis Regina, Nara Leão, Rosinha de Valença, Jorge Ben Jor; inclusive o primeiro disco dele fui eu quem gravou aquele piano”, conta Toninho a respeito das faixas “Mas, que nada” e “Por causa de você, menina”, que abre e encerra o disco. Toninho ficou de 1958 a 1962 tocando no Bottle’s Bar, um dos lugares do histórico beco. “O Beco fica na Rua Duvivier, esquina com a Nossa Senhora de Copacabana. Existem dois prédios, um ao lado do outro. Mas o morador de um prédio não passava para o outro, até que chegou um italiano, comprou tudo e acabou com o muro que havia, por isso tornou-se um beco. Ali Jorge Ben Jor jogava bola na praia. Dom Um Romão e Edison Machado circulavam, só pessoal da pesada. Teve uma cantora que eu acompanhei também, chamada Dóris Monteiro, cantava bossa-nova fantasticamente. Uma das primeiras a cantar.”
O Bottle’s Bar começou a organizar sessions aos domingos, às 16h. “Na hora do futebol, imagine! E eu botafoguense, meu Deus do céu. Quando tinha que tocar… eu abandonava o time e pensava: ‘Eu vou é tocar’. Essas jams envolviam grandes músicos da época, todos cariocas. Não tinha paulista lá não! Surgiam Sérgio Mendes & Brasil ’66, Tenório Júnior e Tom Jobim, ambos pianistas, além de grandes saxofonistas, como Cipó e João Meirelles, que foi o cara que fez os arranjos do Jorge Ben Jor e me levou como pianista.” Jorge Ben Jor dava canjas aos domingos com seu violão, e quando foi chamado pela Philips para gravar, não pensou duas vezes ao convidar Toninho, que já o acompanhava nas sessions. “Eu tenho a mania do rádio. Aí eu fico ligado na CBN até de madrugada. E não é que tocaram o disco (‘Samba esquema novo’) do Jorge Ben Jor, que tem a música ‘Por causa de você menina’? Eu me ouvindo, imagina! Isso aconteceu aqui em Juiz de Fora há pouco tempo. Eu quase liguei para lá para dizer: ‘Vocês acabaram de ouvir o pianista Toninho Oliveira!'”
No dia da gravação, Toninho relembra que ia espiando as reações de Jorge Ben Jor através do vidro que faz a separação da sala de instrumentos com a de operador de som. “Eu via ele lá de dentro, em pé, torcendo e aplaudindo. Eu começo um improviso melódico, mais romântico, para uma menina moça, depois eu vou aquecendo mais, ficou uma coisa assim… um improviso histórico! Você sabe que eu ouvi na Rádio América um disco instrumental com Cannonball Adderley copiando o meu improviso – ‘Vai inventar outro!'”
“Mas, que nada”
O primeiro instrumento de Toninho foi o acordeom. Ele tocava na Rádio Tupi de São Paulo e aos 18 anos foi tocar com a Carmélia Alves, “a rainha do baião!”. Em uma das caravanas de Humberto Teixeira para Portugal, que levava músicos brasileiros para o exterior através de financiamento do Governo federal, o acordeonista da Carmélia não se adaptou, e Toninho foi indicado por um amigo músico que a acompanhava. Cruzou quatro continentes: foi para Joanesburgo na África do Sul, Angola, Moçambique, posteriormente teve uma história no Japão e China, desenvolvendo outros projetos na Ásia, e na Europa permaneceu mais de uma década. Sua história no piano começou quando se tornou acordeonista da boate do Hotel Copacabana Palace. O pianista que o acompanhava era alcoólatra e, vez ou outra, não aparecia. E o dono da boate pedia para que Toninho quebrasse o galho. “O rapaz da limpeza abria o piano, e eu estudava. E eu tinha uma professora, mãe do guitarrista, meu amigo, que arranjou aulas com ela para passar técnicas de piano para mim. Passei a ser o pianista da casa! Vendi o acordeom e me dedicar ao piano.” Daí para frente, parte dos seus estudos era observar bons músicos. “Fui para São Paulo acompanhar o Lennie Dale, cantor e bailarino, e o baterista Dom Um Romão.” Acompanhou também Milton Nascimento no piano, quando Bituca ainda tocava baixo-acústico. “Tocávamos em um hotel, ele ainda não tinha gravado.” Saiu do Brasil bem jovem para ganhar o mundo. No Japão, esteve cerca de um ano gravando com um saxofonista japonês e fazendo piano-bar com uma cantora brasileira. “Gravamos diversos discos. A qualidade do som era muito boa, porque eles estão sempre à frente tecnicamente falando”. Na Europa dividiu noites, principalmente, com italianos e entregue às oportunidades que não faltavam, foi ficando muito mais do que previa, apenas trocando cartas com sua família no Brasil. Tocou um tempo em Macau, região pertencente a China, possessão portuguesa. “É um lugar de cassinos, e eu, de brincadeira, jogava nos caça-níqueis. Uma vez, consegui estourar um pote daqueles que me fez ganhar US$ 800. O cara colocou aquele dinheiro todo em um saco e falou: ‘Se manda daqui porque a gente costuma matar quem ganha’. Acontece que o pessoal não sabia que eu era o pianista, e, um dia, fazendo meu show com música russa, italiana, um cara disse: ‘Conheço o senhor não sei de onde’. Aí eu falei: “Lógico que não amigo, é a primeira vez que eu venho aqui”. Nunca descobriram.
Um piano-bar chamado Elmor
Já em Lisboa, Portugal, onde chegou ao acaso, conheceu a proprietária de um bar chamado Elmor. Elmor? Sim, é o meu sobrenome, de origem libanesa, disse a Toninho, mostrando meu documento. Que coincidência! “Era um bar americano, tinha duas espadas cruzadas e, em cima, o ‘Elmor’ todo iluminado. Toquei lá mais quatro anos com a dona do local, uma bailarina portuguesa, que viajou para o Líbano, Egito. Chamava-a de Rose, mas o nome dela era Rosa Elmor. Ela era mais para loira, então Rose caía bem.” Toninho viveu ótimos momentos na música e com sua companheira Rose, tocava em um hotel 5 estrelas e, a partir de 1h30, ia para o piano-bar Elmor, onde vendiam uma feijoada. “Ficamos quatro anos nessa casa até eu receber a notícia de que meu irmão havia falecido. Voltei ao Brasil em 1989, 1990, com Rose. Fomos morar em Vitória, no Espírito Santo. Rever minha mãe foi uma loucura, depois de 13 anos. De vez em quando eu escrevia para ela: ‘E aquele feijãozinho, está legal?’. E ela: ‘Ô meu filho, só espera você’.” Rose faleceu em 1994, vítima de um AVC, e Toninho decidiu voltar às suas raízes, com a filha adotiva do casal, para Santos Dumont. Depois se mudou para Juiz de Fora, onde fundou o Jazz Club com o baterista Big Charles. “Era fantástico! Lotava, e o pau quebrava. Big Charles era incrível, tinha dia que ele não bebia e tocava mal, mas quando ele bebia, enchia mesmo a cara, aí ele tocava demais! E eu ia acompanhando, aí ele dizia: Eita pianista doido!”. Ao se sentar ao piano, um repertório regado da memória da juventude vem à tona. Toninho se deixa levar pelo improviso e voa com uma virtuosidade impecável.
O encontro com Liza e Elis
Liza Minelli tinha vindo ao Brasil para fazer um show no Hotel Nacional com sua banda completa. Aproveitando o período em que estavam no Rio, o empresário de Liza reservou um piano-bar que existia na Rua General Osório. O pianista do espaço era Toninho Oliveira. “Lembro que a casa estava vazia e, de uma hora para a outra, começou a encher. Eu tinha uma namorada espiã, que ia observando: ‘Leni de Andrade, Beth Carvalho’. Todos convidados da Liza. Eu tinha uma sorte danada, porque eu estava tocando uma música do Sérgio Mendes, ela entrou, aproximou-se do piano e falou: ‘Muito obrigada pela música’. Era ‘So many stars’. Fui tocando até o pianista dela pegar o piano, e junto ao guitarrista fizeram um jazz. Aí ela foi cantar. Ela cantou uma, duas, na terceira o guitarrista falou que não conhecia, o pianista já tinha se levantado. Eu subi no palco, fiz uma reverência e sentei ao piano. Ela falou: ‘What key?’ Graças a Deus eu sabia a tonalidade. ‘F’. A música foi gravação e sucesso da mãe dela. Ela cantou, deixou o solo para mim, e ela pediu aplausos. Foi um auê danado. A Leni de Andrade veio correndo e me abraçou.”
Toninho tornou-se pianista de grandes grupos de bossa e jazz, como Milton Banana Trio e Fogueira Três. Antes de partir para o exterior, havia permanecido um tempo na casa de MPB gerida por Ronaldo Bôscoli e Luís Carlos Miele. Conheceu Elis Regina, que tinha ciúmes do “seu pianista”. No bar Cangaceiro, Toninho tocou com Alcione. “Quando cheguei para ensaiar, era a Marrom que já estava com o pistom, aquecendo os lábios. Ela era novinha, bonitinha. Perguntei: ‘O que você toca?’, ela respondeu: ‘Asa-Branca’. Eu detestava. No outro dia, pediu Fá Maior e entrou cantando e segurando o pistom. Cantou a primeira parte, a segunda e, antes de voltar, falou: “Vai pianista!”. Eu era tão agressivo, quando eu começava a improvisar, realmente quebrava, fazia som de clássico. Aí ela falou: ‘Você está a fim de me derrubar!’. E eu: ‘Se liga que você não vai se perder’. Para voltar para a segunda parte, eu terminei e soltei na mão dela. Ficou lindo.”