Convidado para um show de uma banda cover de Raul Seixas no hoje extinto Hard Rock Café da Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro, Américo Vieira Júnior seria plateia, apenas plateia, até que uma das mesas no lugar pediu “Ave Maria da Rua”. O vocalista não sabia e ofereceu o microfone a quem soubesse. Américo se levantou. “Não estou cantando só, cantamos todos nós, mas cada um nasceu com a sua voz. Ooooh, Ooooh!”, cantou, com sua voz grave, a letra de Raul e Paulo Coelho. Américo não silencia quando o assunto é Raul que, por sua vez, parece não silenciar diante da vida do fã. Para todo momento, uma música? “Sempre tem. Parece religião”, responde Américo. E para o agora? “Quando todos praguejavam contra o frio, eu fiz a cama na varanda”, cantarola os versos de “Eu nasci há 10 mil anos atrás”. “Foda-se o câncer! Todos praguejam contra ele, mas eu vou levando de uma forma que nem parece que tenho.”
Desde 2018 Américo sente os sintomas da doença que só diagnosticou ano passado, quando, em junho, sofreu uma queda no banheiro de casa e fraturou o fêmur. A primeira prótese escapou, a segunda, também. O médico resolveu deixar. E fez uma biópsia que revelou um câncer de próstata com metástase óssea. “Fiquei no CTI, ruim, cadavérico, perdi muito sangue, precisei fazer transfusão, fiz hemodiálise, estava com arritmia cardíaca, sopro no coração. Estava com a alma encomendada. Bati na porta do céu, esmurrei, e nada de abrir. Já que todos gostam, falei, vou voltar. Fiquei dois meses internado e estou em casa desde 25 de agosto”, recorda-se bem-humorado o homem de 62 anos, sentado numa cadeira de rodas e 20 kg mais magro.
“Eu gostava de beber um pouquinho e era um tabagista inveterado, fumava um maço e meio por dia, até junho. Hoje não tenho mais vontade. Também era muito dinâmico, resolvia tudo sozinho, dirigia, e ficar dependente é deprimente. Possuo um pensamento tão positivo que não acredito que tenho um tumor. Essa minha forma de tratar com certo desdém, certa indiferença, é positiva, porque se eu ficar me lamuriando a imunidade cai”, avalia, às voltas com mais de dez tipos de medicamentos diferentes que toma ao longo do dia, alguns deles frutos de terapias alternativas, como o MMS (Solução Mineral Milagre), à base de clorito de sódio e ácido cítrico, e a auto-hemoterapia. “A recuperação está no caminho certo, e vai chegar num momento em que vou conseguir sustentar a prótese. Cada vez que faço exame é um sucesso, um avanço”, diz, otimista, ao lado da esposa, Caren, com quem vive há dez anos, e vestindo uma camisa com a imagem de Raul Seixas.
‘Não diga que a canção está perdida’
Era 1972 e no Festival da Canção surgiu um certo Raul Seixas, todo de couro preto, sem barba, cabelo puxado para trás e cantando “Let me sing, let me sing”. “Que legal, a música, mistura de rock com baião”, pensou Américo, com seus 15 anos. “Fiquei com ele na cabeça e, no ano seguinte apareceu um dos maiores sucessos dele, ‘Ouro de tolo’. Veio 1974, com ‘Gita’. Minha mãe até falou para eu ouvir, mas como eu tinha bronca com ela, não dei muita ideia. Os anos passaram, eu tocava no violão, mas em janeiro de 1978 eu tinha 20 anos e um amigo me chamou para ver o show do Raul Seixas no Teatro Tereza Rachel, em Copacabana. Foi o único show bom que ele fez. Os shows dele eram péssimos porque ele tinha medo do público. Ele gostava do laboratório que era o estúdio, depois jogar a bomba e ficar vendo de longe”, comenta Américo, que dias depois da apresentação comprou todos os discos do músico. “As minhas ideias estavam em poesia, em música. Foi uma identificação imediata”, conta. Já nos anos 1980, vivendo em Juiz de Fora, onde cursava geografia, costumava reunir os amigos numa mesa no Braseiro, na Avenida Rio Branco, e tocar músicas de Raul. Fazia o mesmo no Bar Redentor e no Bar Esperança. “As pessoas mandavam cerveja para a minha mesa, filé com fritas, em forma de agradecimento. Não tinha couvert, e o dono gostava porque segurava o público lá”, recorda-se. Tocava, ainda, na sede do Partido dos Trabalhadores, recém-fundado. “Era outro partido. Éramos todos sonhadores, idealistas, e a coisa degringolou com o passar dos anos”, diz ele, que estava em sala, concluindo o curso de geografia, quando recebeu a notícia da morte de Raul.
‘E não diga que a vitória está perdida’
Era 22 de agosto de 1989 quando o país ouvia a notícia da morte de Raul Seixas, vitimado por uma parada cardíaca em sua casa, na noite anterior. Américo foi-se embora da faculdade, abriu uma garrafa de whisky em casa e começou a escrever uma longa carta para o ídolo. “Fiquei três dias lendo e chorando. Fiquei abalado mesmo. Mesmo com ele ruim, fora da mídia, sofri. Ele era um morto vivo e era irreversível a situação dele. Ele tinha só 44 anos, mas passou a ter vida após a morte. Nunca se falou tanto de Raul”, aponta Américo, para logo recitar os versos de “Canto para minha morte”: “Eu te detesto e amo morte, morte, morte, que talvez seja o segredo desta vida”. “A morte foi o segredo da vida dele. Ele passou a viver após a morte. A obra dele é muito maravilhosa, profunda e extensa. E talvez o lado B e C seja melhor que o lado A”, avalia. Convidado pela Funalfa a integrar uma homenagem a Raul, Américo chamou amigos para tocar, como André Durães, hoje seu cuidador e primeiro guitarrista da banda formada apenas para um show. A data prevista coincidiu com o primeiro comício de Lula em Juiz de Fora, na Praça da Estação. A homenagem, que aconteceria no Parque Halfeld, foi adiada, e a banda acabou estreando no palco onde Lula falou para cerca de 25 mil juiz-foranos. Duas semanas depois retornou à cena para o show adiado. Lotou. “Tecnicamente foi um show muito ruim, mas de muita energia. Não tínhamos a pretensão de continuar, mas os dias foram passando e a galera começou a perguntar quando seria o próximo. Vi que tinha demanda. Quando virou para 1990, lotamos o Pró-Música e passamos a tocar quase toda semana. Várias cidades da região chamavam a gente”, lembra ele, que subiu ao palco com sua Raul Queixas & Mágoas pela última vez no já longínquo 2016. “A gente foi ficando velho”, ri.
‘É de batalhas que se vive a vida’
Era 2007 quando Américo aposentou-se da Polícia Federal. Até 2010, ainda trabalhou como coordenador de segurança da Universidade Federal de Juiz de Fora. Ansiava por descanso. Nascido em São José dos Campos (SP), em abril de 1964 mudou-se para o Rio de Janeiro, acompanhando o pai militar. Filho único do casal, tinha dois irmãos do primeiro casamento da mãe. Aos 12 entrou para o Colégio Militar carioca, iniciando uma extensa trajetória fardada, que ainda passaria pela Epcar, em Barbacena, e pela a Academia da Força Aérea, em Pirassununga, onde trabalhou na intendência. “Eu queria era pilotar aquelas máquinas, voar. Fiquei um ano e pedi baixa”, conta. O jovem Américo, então, mudou-se para Belo Horizonte, depois seguiu para Barbacena, onde casou-se e teve seus dois filhos – Mônica, hoje com 39 anos e mãe de Raul (homenagem ao ídolo de Américo) e de Murilo; e Allec, com 38 anos. A filha tinha 2 anos, e o filho, 1, quando a mãe de ambos foi embora. No início dos anos 1980 Américo tornou-se pai solteiro. “Eu ganhava muito pouco, trabalhava dando aula em cursinhos pré-vestibular e supletivo, graças aos meus conhecimentos da escola militar”, conta ele, que em 1984 viu um anúncio de um concurso para a Polícia Federal e se inscreveu. “Tinha bode” da ideia de se tornar policial em plena ditadura, mas tomou os versos de Raul Seixas e encarou o desafio que traria conforto a ele e aos filhos. “A arapuca está armada, e não adianta de fora protestar. Quando se quer entrar num buraco de rato, de rato você tem que transar”, cantarola ele, que passou em primeiro lugar nacional no concurso para escrivão. Queria ser músico profissional, mas tinha urgências. Seguiu amador, tocando Raul! Sua música preferida é “Ouro de tolo”. “Ela resume tudo na vida. Pude deduzir da obra de Raul que temos dois grandes caminhos para tudo, o fácil e o difícil. É fácil complicar, mas difícil simplificar. A gente vê isso também na letra de ‘Maluco Beleza’: ‘Enquanto você se esforça pra ser um sujeito normal e fazer tudo igual, eu do meu lado, aprendendo a ser louco, um maluco total, na loucura real. Controlando a minha maluquez, misturada com minha lucidez’. Não é uma ‘porralouquice’. Nada contra tomar uma birita, mas é muito fácil ser louco com aditivos. Ser maluco beleza de cara limpa é outra coisa.”