Rara é Tatiana Schlaucher Krass Ribeiro Chagas. Aos 39 anos, dez deles acometidos pela polimiosite, uma doença autoimune degenerativa, ela observa o mundo com olhos verdes e generosos. “Nesse mundo em que as pessoas estão cada vez mais frias, encontrar pessoas que olham para o lado é algo raro. E eu estou cercada dessas pessoas. Tenho do que reclamar?!”, questiona, para logo observar o companheiro, que encontrou meses antes de sentir os primeiros sintomas de uma doença tão devastadora quanto silenciosa.
“Encontro nele um ser humano raro. Ele é que é raro. Ele encara minhas dores todos os dias e mantém um sorriso no rosto. Ele se preocupa comigo e com as pessoas que estão em volta. Isso é raro! No hospital, por várias vezes, não havia enfermeiros para levar as mulheres para fazer um raio X, e ele as pegava no colo e levava. Ele percebia outros pacientes que não estavam comendo, ou não tinham roupas. Ele tem um amor que é dele”, aponta, voltando-se, então, para a pequena Isabel, com seus 2 anos: “Minha filha, quando passo mal, vai na minha gaveta e sabe onde fica minha pasta de documentos, abraça, leva no carro e diz para eu ficar tranquila, que ela vai ficar bem. Nas três crises convulsivas que tive, ela se sentou no chão e colocou minha cabeça no colo dela.”
As costas doem. Pentear cabelo dói. Andar dói. Mas dói mais a ausência de reais perspectivas. “Dói pensar que posso não ver a Isabel crescendo. Quero estar com ela quando ela entrar na puberdade, quando entrar na faculdade, quando brigar com o primeiro namorado e achar que o mundo vai acabar”, diz, com olhos marejados, uma mulher que raramente chora. “Fisicamente estou mal. Uma mulher de 40, no corpo de uma de 80, e em estágio terminal. Mas minha cabeça está bem. Não é saudável enfatizar o que há de ruim. A morte é uma consequência da vida. Fomos feitos para o eterno”, ensina. “A morte é o descanso.”
Confiança na acadêmica
As pernas doíam, a panturrilha parecia queimar, e Tatiana justificava pelo excesso de trabalho. “Os primeiros sintomas apareceram logo depois da morte da minha avó, em novembro de 2008. Em fevereiro, engravidei, descobri e perdi em abril. Eu já estava doente, mas não sabia. Sentindo muitas dores nas costas, procurei uma Unidade Básica de Saúde e me encaminharam para ortopedistas. Fui a seis especialistas, e todos tinham certeza que era problema de coluna. Os remédios, ao invés de me ajudarem, pioravam meu quadro, já que eram relaxantes para um músculo que já estava se desfazendo. Quando eu já andava curvada, tinha crises de dor, fui visitar uma prima no (Hospital Dr.) João Penido, e tive uma crise na porta. Quem me atendeu foi uma acadêmica. Eu estava no meu limite, a cada dia mais fraca e muito magra. Desabei com a acadêmica, que pôs a mão na minha cabeça e disse que descobriria o que eu tinha”, recorda-se, com a voz calma e a fala pausada. Naquele mesmo dia Tatiana foi internada e iniciou uma sequência de exames, com uma junta médica formada por especialistas e residentes. Justamente a que tinha menos experiência, a acadêmica, apontou para o alvo certo quando sugeriu, logo no primeiro prontuário, a possibilidade da polimiosite, hoje já acompanhada pelo diagnóstico das síndromes de Cushing e de Sjögren e da Esclerose Múltipla Remitente Recorrente. Durante os 40 dias em que permaneceu no hospital, ela começou a tomar corticóide, teve um AVC e saiu numa cadeira de rodas. Deixou para trás os cursos de administração e o técnico em química, nos quais estava matriculada, e o trabalho no comércio, numa trajetória profissional iniciada aos 12, como babá, e mais tarde como operária numa fábrica de calcinhas.
Paz nos sete meses
Filipe, o marido, chegou trazendo lembranças da adolescência, quando Tatiana tinha 19 anos e ele apenas 13. Quando ambos pertenciam à turma do skate. Quando ele, encantado, lhe prometia casamento. Quando ela, já madura, negava o beijo que só foi dar dez anos depois. “Nos reencontramos depois de eu ter terminado uma relação de seis anos, e ele, uma de dois. Eu estava triste e fui ligar para um amigo, mas errei o número e liguei para ele. Acabamos conversando e marcamos de sair. Desde então estamos juntos. No mês seguinte, ele chegou na minha casa de mala e cuia dizendo: ‘Vim para ficar!’.” Ficou, apresentou a ela a igreja Bola de Neve Church e partilhou o plano de ver a família crescer. Ele abdicou da vida dele para cuidar de mim e da Isabel. Ele é meu braço, minhas pernas e meu coração.” Em meados de 2014, Tatiana pesava 145kg, estava bastante inchada pelo uso demasiado de corticóide, e repentinamente começou a emagrecer. A primeira suspeita era de um tumor em alguma parte do corpo. “Fui revirada do avesso.” Era novembro, e, no mês seguinte, após passar mal, ela seguiu para o hospital. “Dei entrada no João Penido e fui fazer ultrassom. A médica pediu para fazer outro. Quando colocou o aparelho, com o volume alto, ouvimos um tum tum tum. Perguntei, e ela me falou: ‘Você está gravidíssima!'”, conta. Acrescido o fato de ela estar doente, o marido tem baixa fertilidade. Engravidar e manter seria algo raro. “Eu tomava 12 medicações, e os médicos defendiam que eu só poderia retirá-las com desmame. Mas retirei em um dia, apenas, e não senti nada. A gravidez foi uma bênção. Era como se eu nunca tivesse ficado doente. Andava, abaixava, andava de moto, voltei a comer, não tive pressão alta, nem diabetes. E todos achavam que eu iria morrer na sala de parto”, recorda-se ela, que mais uma vez se viu numa saga por obstetras que encarassem sua condição. Novamente, conseguiu. “A Isabel nasceu com 7 meses. Sabíamos que ela seria prematura, estávamos preparados. Tomei anestesia geral, porque não podia tomar a ráqui com o risco de não mais andar. Então, ela nasceu desacordada, foi entubada e encaminhada para a UTI neo-natal, onde teve uma parada respiratória. Como já estava recebendo oxigênio, não ficou com sequelas. Só fui vê-la dois dias depois”, narra. “Já na mesa do parto, que foi acompanhado por cardiologista, pneumologista, reumatologista e outros especialistas, tive que fazer pulsoterapia. A doença voltou me arrasando de todas as formas.”
Fé no além-mar
Insistir era resistir. Durante o tratamento, Tatiana passou pelo Hospital Universitário até começar a ligar para diferentes instituições pelo país. A cada alô, uma nova negativa. Até que um paciente de polimiosite de Poços de Caldas leu um depoimento de Tatiana em seu blog, procurou o telefone dela e lhe estendeu a mão, mesmo estando a muitos quilômetros de distância. O novo amigo conseguiu-lhe uma consulta na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), onde ela continua a ser atendida. Para a viagem, família e amigos se mobilizaram, promoveram feijoadas e conseguiram os R$ 3 mil necessários para a primeira estadia na cidade paulista. “Há algum tempo venho pesquisando. Uma das grandes armas que nós temos é o estudo, temos que conhecer muito bem nossa patologia, porque senão morremos. Nesses estudos, descobri a Europa, que tem cerca de 33 milhões de pacientes raros, e existe um grande investimento em pesquisa, medicações, especializações e até prêmios para médicos que se dedicam a isso”, conta, sorrindo, na expectativa de arrecadar, com uma campanha iniciada nas redes sociais, R$ 150 mil para permanecer por três meses, com o marido e a filha, em Portugal, onde a pesquisa sobre a polimiosite apresenta-se bastante avançada. “A doença continuou em expansão. Cheguei a fazer quimioterapia, tomar biológico, ciclofosfamida, ciclosporina, metotrexato, e muitas combinações. Nada fez efeito. Meu organismo parou de responder. Agora tenho dificuldades para respirar, minhas crises de dor estão cada vez mais frequentes. Sinto dor 24 horas. Tomo cerca de 60mg a 120mg de morfina por dia. Quando não funciona, sou internada para tomar dolantina, e isso tem acontecido de dois em dois dias. Estou parando de andar. Quatro ou cinco passos, para mim, é muito doído”, conta ela, natural de Nova Iguaçu. Aos 9, com a mãe, o padrasto e o irmão, mudou-se para Juiz de Fora, para o Bairro de Lourdes, buscando qualidade de vida. Há alguns anos, Rute e Lucimar (a mãe e o padrasto) decidiram morar num sítio em Piau, para onde Tatiana se mudou com a família, pouco depois do nascimento de Isabel. “Não sou só eu que ficou doente, mas toda a minha família”, lamenta ela, de força e fé raras. “É nos momentos de tristeza, quando estamos mais fracos, que nos aprimoramos como ser humano, que nos aproximamos de Deus.” Rara é Tatiana Schlaucher Krass Ribeiro Chagas.