Ansiosamente o menino esperava os 18 anos. Passado o aniversário, chegaria, então, outra festa para Arnaldo Valverde. Num lugar fechado, o jovem encontrou a liberdade que o mundo não lhe oferecia. “O Cine São Luiz ficava de frente para a Praça da Estação. Para chegar da bilheteria até a sala de exibição, era um espaço enorme, de uns 20 metros, que pareciam quilômetros. Era uma exposição gigantesca, que parecia que a cidade inteira estava te vendo”, recorda-se. “Era tipo o Cine-Theatro Central, com as poltronas em formato de auditório, de madeira pura, sem estofado, com um telão gigante. Talvez lembre mais o Palace. No início era muito bom, depois entrou na decadência com banheiros sujos e poltronas quebradas. Eram outros tempos, não havia internet, e poucas pessoas tinham videocassete. Eu ia de duas a três vezes por semana. Quando ele fechou, eu já não estava em Juiz de Fora”, conta o homem de 54 anos, décadas vividas em cinemas pornôs.
“Sempre gostei de cinema adulto. Ao longo do tempo, eles foram degradando. Em Brasília, montei um, há dez anos, com a ideia de ter um cinema de qualidade no segmento erótico. A ideia surgiu em Nova York, porque até então eu só conhecia cinema grande, que estava ficando decadente. Lá eu vi uma sala pequena com telão. Para sacramentar a ideia, quando morei em Vitória conheci um cinema pequeno, com duas salas e muito movimentado. O Cine Vip surgiu dessas muitas experiências como frequentador, tentando tirar tudo o que eu achava ruim em cada um deles. Higiene é fundamental, e a frequência também é sem segregação. Cinema pornô não tem que ser um ponto, tem que ser cinema, ainda que seja erótico. Deve ser um ponto de paquera, de encontro, que todo mundo possa entrar. Aqui vem hétero, gay, coroa, novinho, travesti, mulher, casais, todas a gama de pessoas da sociedade”, defende o empreendedor, recusando-se a tocar em números.
Num entra e sai constante, os que chegam adentram o hall de paredes brancas e aguarda uma mão se estender pela pequena abertura da bilheteria. Uma camisinha é o passaporte. O clima de discrição fica na porta. No cinema, com duas salas – uma com 20 lugares e outra com dez -, o escuro dissimula identidades. “Desde que tenho cinema, nunca vi uma briga, porque quem entra não quer ser notado. Já vi casais que vêm só para assistir, com fetiche de estar num ambiente desses. Já vi gente que passa no cinema para aquecer para um encontro, homem que não tem coragem de se vestir de mulher e vai no banheiro do cinema e coloca uma peruca e sai pela sala”, conta Arnaldo, enquanto gemidos são ouvidos ao fundo.
A bonbonnière
A primeira vez que Arnaldo contou na família que havia aberto um negócio novo, uma tia idosa e muito religiosa estava por perto. “Um primo falou: ‘Está sabendo que o Arnaldo abriu um cinema, tia?!’ Aí eu disse: ‘Ensina como se fazem os bebês’. Ela falou: ‘Olha, que bom, meu filho!’ Só não falei que ensinava em diferentes posições”, ri o empreendedor, que estreou no ramo em Brasília, numa loja de 100m² e apenas uma sala. “No primeiro ano, era improvisado, não tinha divisórias, eram cortinas pretas. No ano seguinte, contratei um arquiteto, que remodelou o cinema inteiro”, conta ele, referindo-se ao espaço que hoje seleciona três produções distintas para cada uma de suas salas. Mais tarde arriscou em Goiânia, no mesmo formato. Em Juiz de Fora, há quatro anos, optou por um espaço maior, com 280m² para duas salas que se integram. “Construí minha casa na Graminha, procurando sossego. Juiz de Fora é mais tranquila, vem de muitos anos de liberdade, a primeira cidade que teve a Lei Rosa. O Miss Gay é superantigo”, enumera ele, que ao montar o próprio cinema deparou-se com o lugar que o iniciou como espectador de filmes adultos. “Aqui no cinema encontrei pessoas da época do São Luiz. Olhei e falei: Nossa! Está velhinho, hein?!”, ri ele, que mantém dois funcionários na casa, aberta do meio-dia às 22h. “Não fico o dia inteiro lá dentro, mas sempre dou uma passada pelas salas. E, às vezes numa passada, rola uma paquera. É como quem adora comer doces e tem uma bonbonnière. Não vai comer chocolate o dia inteiro, mas de vez em quando pega uma barrinha e se delicia.”
O antropólogo
Quando Arnaldo e seu cinema chegaram à Avenida Francisco Bernardino, o apartamento acima da loja estava desocupado. “Agora aqui em cima mora uma família, e temos uma relação muito boa. Tem duas crianças e um casal. Uma vez perguntei se os incomodava. Eles disseram que ter o cinema é a melhor coisa, porque, quando fechamos a porta, a rua entope de prostituição e drogas. Enquanto o cinema está aberto, não tem ninguém fazendo ponto na frente”, conta. “O negócio tem a ver com quem dirige. Pode ser até um bar. Se o dono adora uma droga, o bar dele vai ter drogados o tempo todo. A mesma coisa é a prostituição. O cinema pornô não é isso. Até porque seria mais fácil abrir uma casa de prostituição que abrir um cinema. Meu cinema tem a minha cara. É um ponto para dar uns amassos, mas não é um motel. A cama é um outro passo”, ri o homem, falando com naturalidade enquanto a seu lado, em dois pequenos monitores, são exibidos os filme apresentados nas salas. “Chega um ponto que nem vê mais, nem repara na tela.” Saem uns, entram outros, num movimento diretamente proporcional ao pudor com que a sociedade lida com seus filmes adultos. “Sexo é tão natural e virou tabu. É assustador em pleno século XXI ainda discutirmos isso. A sociedade é hipócrita, mas o escurinho do cinema tira um pouco as máscaras das pessoas”, revolta-se Arnaldo, pontuando a segunda-feira como o dia de maior frequência. “A maioria é um pessoal casado, que não pode assistir filmes em casa ou quer dar uma paquerada e não tem aonde ir. Fora que há a magia do telão. A maioria do público é masculino. Mulher é mais tímida.”
O ator global
Filho de um funcionário do DNER, Arnaldo aos 6 anos transferiu-se, com a família, para o Rio de Janeiro, de onde se mudou aos 21, para Brasília, para cursar artes cênicas e morar com a irmã, com quem montou uma loja. “Teve um tempo no Rio, nos anos 1990, em que fiz um pouco de TV Globo. Fiz pontas, nunca protagonizei, porque não fui persistente. Na novela ‘Deus nos acuda’ (de 1992), eu fazia uma ponta com o personagem Brasil, do Jorge Fernando, que vivia bêbado. Na época, o Projac estava em construção. Gravávamos muito numa cidade cenográfica de Sepetiba. Ou na Herbert Richers, perto do Morro do Borel. Eu era muito novo e muito aventureiro, então saí do Rio, que estava muito violento, e voltei para Brasília, que é uma terra cheia de oportunidades”, lembra. De lá, partiu para Nova York. “Fui para aprimorar o inglês e trabalhar, só que quando você não vai com visto de emprego, acaba se sujeitando aos subempregos. Trabalhei num coffee shop, em restaurantes, enquanto em Brasília eu cheguei a cumprimentar o presidente”, orgulha-se. De volta ao país, Arnaldo empregou-se em Juiz de Fora, numa empresa de telecomunicações. “Nos meus últimos anos na empresa, comecei a pensar em montar um cinema, fazendo croqui e imaginando como seria”, lembra o homem que investiu no próprio prazer e nos desejos alheios. “O mundo corporativo suga muito, mas aprendi a gerenciar, tive uma experiência muito boa, divertida. Uma das minhas características é trabalhar e conseguir me divertir.”