Tinha 14 anos quando estendeu um pequeno pano sobre as pedras portuguesas da Rua Halfeld. O Banco do Brasil, o endereço, era ainda projeto que se tornaria realidade no ano seguinte, em 1995. Vicente Cristiano da Silva começou a vender suas pulseiras e cordões sentado no chão, diante da Galeria João Beraldo, onde manifestações e protestos marcaram a história local. Também vendia seus trabalhos na escola e no curso profissionalizante de mecânica no Senai. “Ao mesmo tempo, um companheiro meu, camelô com quem eu tinha amizade aqui, me chamou para trabalhar com ele, aqui no Calçadão e em festas. Comecei com ele, fiquei durante alguns meses, e depois segui meu próprio caminho”, recorda-se o homem, aos 40 anos.
Passados pouco mais de 25 anos, Vicente mantém-se no mesmo lugar. Alguns metros abaixo, na verdade, quase diante do Cine-Theatro Central. Permaneceu nele o fascínio pelo comércio popular, ampliou sua desenvoltura com os trabalhos manuais. Mudou, no entanto, a própria vida e a rua. Tanto ele quanto o Calçadão são outros. “Desde criança eu tinha tanto o artesanato quanto o comércio comigo. Meu falecido avô era comerciante, e acho que puxei dele. Está no sangue”, diz, sorrindo, o artesão, que só no início dos anos 2000 fixou seu ponto no coração da cidade.
“Eu saía para uma ou outra cidadezinha aqui perto, em Minas. Viajei bastante até Viçosa, passando por Ubá, Visconde do Rio Branco. Às vezes, dava um rolezinho pelo Espírito Santo. Chegou um tempo em que eu precisei escolher: ou atendia picadinho em cada lugar ou ficava direto aqui”, conta. Vicente escolheu o Calçadão. Também escolheu a noite. “Sempre quando pinta alguma situação estranha aqui, damos um toque um para o outro”, diz ele, acostumado com a rotina do lugar onde só monta sua barraca quando os postes se acendem anunciando o novo turno.
Impacto que precede a fé
“Quando comecei a trabalhar aqui, eu ainda tinha as duas pernas”, lembra Vicente, sentado numa cadeira, sob a marquise de uma loja da Halfeld, aguardando o momento de montar sua banca. Era o final de 1995, Vicente andava pela Avenida Itamar Franco (na época, ainda Avenida Independência), próximo ao Pórtico Sul da UFJF, no Dom Bosco. “Eu estava descendo o morro. Olhei para um lado e para o outro, não vi veículo. Quando fui atravessar o carro me atingiu. Acordei no hospital, 15 dias depois”, rememora o homem, que com o impacto foi lançado sobre o capô do carro, quebrou as duas pernas, o maxilar, perdeu a visão de um dos olhos e o olfato. A perna esquerda, após problemas circulatórios, precisou ser amputada. “Usei um pino no joelho da perna direita, durante um ano fiquei na cadeira de rodas fazendo movimentos contínuos para ela não atrofiar. Depois de um ano, quando tirei o pino do joelho, na mesma semana eu já estava andando de muletas para cima e para baixo, bem demais. Fui seguindo, fazendo as coisas e voltando a trabalhar na rua. Graças a Deus tive uma boa adaptação ao que ocorreu. Senti uma modificação, mas procurei me enquadrar”, garante. “Quando eu era moleque sempre procurei eu mesmo fazer minhas coisas. Não gostava de ficar esperando. Eu sempre buscava fazer o melhor.” Ao Centro, ele chega por volta das 15h, mas só monta a banca às 18h. Sai às 21h, 22h ou 23h. “De quatro anos para cá, o mercado não segura mais a gente até muito tarde. Mudou muito a cidade, expandiu. O fluxo de estudantes, que era centrado aqui, modificou muito o nosso movimento”, explica ele, pontuando uma queda no rendimento. “Vou me virando, procuro inovar, apostar em variedades.”
Coragem que antecede a batalha
Quando retornou a Juiz de Fora, cidade onde nasceu, Vicente contava 5 anos. “Meu pai e a família dele era de São Paulo. Moramos um tempo por lá.” O ambiente intoxicado pelo alcoolismo do pai fez com que a mãe com três filhos fizesse as malas e deixasse para trás a metrópole. Costureira, a matriarca que já havia sido faxineira, cozinheira e muitas outras funções, acabou reencontrando em Juiz de Fora um antigo amor. Namoraram, se casaram e mais tarde deram a Vicente sua irmã caçula. O homem era pedreiro e ensinou o ofício ao jovem Vicente. “Trabalhei com ele durante cinco anos como servente”, conta ele, que nessa época envolveu-se com o curso profissionalizante de mecânica. “Não tirei o ensino médio por safadeza”, ri Vicente. “Até a quinta série, eu fui de boa. Mas abandonei o curso no Senai, fiz a sexta série em dois ou três anos. No custo, tirei a sexta série, mas já em 2001, num curso supletivo que a Prefeitura oferecia. Não dei continuidade. Preferi o trabalho com o artesanato. “Minha mãe sempre fez esse tipo de trabalho, hoje mexe com costura. É uma herança”, afirma. Um dos irmãos é motorista, uma é professora, a outra é colaboradora na Igreja da Graça, que Vicente também frequenta. “Quando é moleque, fica todo mundo junto, depois espalha. Agora está todo mundo para um lado”, lamenta, recordando-se da infância feliz no Parque Guarani.
Sonhos que sucedem o trabalho
Quando começava a vida profissional, Vicente iniciou um curso de informática. Logo parou. Hoje vê no ambiente virtual um novo espaço para estender seu pano e vender seus artesanatos. “Mexo na internet, mas só o básico.” Por isso, não passa por sua cabeça sair da rua. “Enquanto puder trabalhar, vou seguindo”, diz o homem de barba grisalha tão longa quanto os cabelos. Todos os dias Vicente pega o carrinho num estacionamento na Avenida Rio Branco e retorna para guardá-lo, quando o expediente acaba e é preciso tomar um ônibus rumo à casa onde vive na divisa entre os bairros Alto dos Passos e Mundo Novo. Solteiro e sem filhos, faz tudo sozinho. “Sempre gostei de trabalhar. Essa foi a minha opção”, diz ele. Em dias de chuva, trabalha debaixo da marquise. Em sua colorida banca, ele vende peças que produz com as próprias mãos e bijuterias que revende para complementar a renda. Às vezes, vai em excursão para comprar materiais e peças manufaturadas em São Paulo. “Não é sempre que o artesanato salva, e sempre tem gente procurando outras coisas”, explica. Adotou a filosofia hippie?, pergunto. “Sou artesão. O hippie foi uma fase, naquelas décadas de 1960 e 1970. E passou”, responde ele, que em 2012 voltou a fazer filtros dos sonhos, amuleto desenvolvido na cultura indígena norte-americana com o poder de purificar energias. Quais são seus sonhos, Vicente? “Não tenho muitos. Uma coisa que não consegui ainda foi a casa própria. Vou batalhando, trabalhando, pagando aluguel, seguindo até conseguir.”