“Superei muita coisa”, diz Andréia de Oliveira. A voz está embargada. Os olhos, marejados. “Faria tudo de novo. Sairia da minha cidade, com medo, e enfrentaria o que enfrentei para chegar até aqui. Pude mudar a minha perspectiva”, acrescenta, emocionada, a mulher de 34 anos, 15 deles vivendo em Juiz de Fora. “O melhor que pude fazer por mim fiz e continuo fazendo. Hoje não tenho casa própria, não tenho carro e outros bens materiais, mas tenho um pouco de saber. Hoje sei conversar melhor, sei escrever, consigo discutir alguns assuntos. O acesso à educação me fez a mulher que sou”, emociona-se, recordando o início do trajeto, ainda aos 3 anos, quando a mãe pegava-lhe pelo braço rumo à escola. “Naquele tempo, convivia com um pai que batia na minha mãe na frente da gente. Meus irmãos se revoltaram muito com isso, eu também. Quando fui crescendo, minha mente foi tomando isso como coisa que não quero para minha vida. Quando ele parou de beber, deixou de ser agressivo. Vinte e cinco anos da minha vida passei vendo ele bem, ainda que fosse muito machista”, conta ela, única mulher entre três irmãos naturais da pequena Bias Fortes. “Para conseguir fazer o ensino médio, que era noturno, quase tive que levar um padre lá em casa para convencer meu pai. Meu pai me levava e me buscava. Eu era a única filha buscada no ensino médio”, rememora, aos risos, uma corajosa mulher que fez dos próprios muros mirantes para outra existência.
A casa dos pais
O pai, Sebastião, conhecido como Peixe Frito, era letrado, mas passou pouco tempo na escola, foi pedreiro em boa parte da vida e também sapateiro, eletricista, dentre outros ofícios que assumiu até morrer em 2014. A mãe, criada na zona rural, estudou ainda menos. “Junta palavras e assina o nome”, conta Andréia. Os irmãos não se profissionalizaram. A própria história Andréia quis escrever de outro modo. Desde pequena. Aos 7, vendo a mãe depressiva, aprendeu a cozinhar para a família no fogão a lenha feito de terra e pintado com tabatinga, um tipo de argila que se apresenta com colorações diversas. Fogão a gás mesmo, a menina só encontrou aos 15. “Nossa casa era de chão batido, e nem banheiro tinha. Era um quarto, uma sala e uma cozinha. Era de telha, as camas eram de madeira, o estrado era feito com paus, e os colchões, de capim ou palha. Eu não gostava daquilo, mas não tinha outra forma, porque ou dormia naquilo ou não dormia. Não tinha água encanada. Para lavar roupa e vasilha, íamos numa área coletiva que tinha água, e todo mundo da comunidade ia. Tinha um revezamento e uma fila de quem chegava primeiro. Não me esqueço de ver minha mãe saindo de casa com a bacia na cabeça para lavar roupa ou vasilhas. Também não tinha luz, usávamos uma lamparina de querosene. A casa era do meu avô e ficou para o meu pai. Nasci dentro dessa casa, que fica no bairro que é considerado o mais pobre da cidade. Tanto que nem tinha nome bonito: era o Barranco. Os terrenos eram todos da igreja. É, até hoje, a periferia da cidade e o lugar dos mais pobres. Com o passar dos anos, a ribanceira onde ficava a casa começou a ceder por causa das chuvas. A casa perigava cair com a gente dentro, mas não tínhamos para onde ir. Lá em Bias Fortes tem vilas da igreja, dos Vicentinos, que é onde fomos morar”, lembra Andréia, que naquele início de adolescência viu, dias após sair da casa, o morro engolir a construção durante uma madrugada chuvosa. Foi, então, que ela descobriu que banho não era só de bacia. O banheiro da vila, porém, era coletivo. “Era um monte de casinhas num corredor e, no final, tinham tanques e o banheiro coletivo”, conta. No lugar, todos os cinco Oliveiras dormiam numa só cama. “Para sair da cama, tínhamos que sentar e descer, não tinha como sair pela lateral. Aquilo me incomodava. Eu via amigas que tinham quarto e eu não tinha nenhuma possibilidade.” Ainda.
A casa dos outros
Da casa que desmoronou, Andréia guarda as lembranças de um lugar que, apesar de muito pobre, era permanentemente limpo. “No verão, quando a gente ia para a escola, minha mãe aguava o chão para quando voltássemos não ter mais poeira”, diz, sorrindo. Passado algum tempo, a família ganhou um lote no mesmo bairro Barranco, mas numa área segura. O pai de Andréia e amigos se juntaram para construir um novo lar. “Meus irmãos tinham vergonha de tudo, e eu tive que sair de casa em casa para pedir material de construção. Ganhei muita coisa: pia de cozinha, cimento, vaso sanitário e muitas outras coisas”, lembra-se a mulher, que enquanto via amigas ganharem festas de 15 anos, ganhava, ela, os irmãos e os pais, uma casa de telha de amianto, horta na área externa e três quartos. “Meu pai sempre me obrigou a ficar no quarto deles. No mesmo quarto do casal tinha uma cama para mim.” Responsável, desde os 10, Andréia ajudava a cuidar das filhas da madrinha e, naquela época, trabalhava numa farmácia da cidade. “Lá conheci pessoas que me ajudaram muito, principalmente a sair de Bias Fortes para estudar e trabalhar. Um deles era um bioquímico que abriu uma farmácia lá. Fui ser a faxineira do lugar e também ajudava a vender os medicamentos. Trabalhava durante o dia e estudava à noite, e ainda ajudava minha mãe em casa e dividia o dinheiro com meu pai. Fiquei até os 18 anos. Ele que me arrumou emprego em Juiz de Fora, na família da ex-mulher dele”, recorda-se. Andréia teve um mês para aceitar a oferta de emprego e convencer os pais. Os pais resistiram, a mãe ficou brigada por meses, mas ela não deu o braço a torcer. Em janeiro, há 15 anos, chegou a Juiz de Fora para morar com uma senhora e trabalhar como empregada doméstica. “Ela queria alguém para morar com ela, pela idade que tinha. Ela sempre teve empregadas que moravam com ela, e a maioria vinha de Bias Fortes, por ela ser de lá. Lembro que vim para arrumar, passar, cozinhar e ser companhia dela. Ela teve um câncer e acabei ficando meses, porque ela morreu em setembro. A filha dela me deu a opção de não continuar. Se eu não quisesse trabalhar como doméstica, poderia. Mas eu tinha medo de não conseguir me manter. Com ela, passei seis anos. Trabalhava e fazia cursinho à noite. No primeiro ano, eu queria fazer vestibular para direito, mas já tinha um pezinho na arte e na cultura. Não passei daquela primeira vez. No segundo e no terceiro anos, tentei comunicação.” Não passou. Ainda.
A própria casa
Na quarta tentativa, Andréia foi aprovada e entrou em 2008 para o curso de comunicação social da UFJF. No final de 2009, tentou negociar uma redução da carga horária para que fizesse estágio. A patroa não aceitou. “Foi quando meu irmão mais novo veio para Juiz de Fora, e alugamos uma casa em Santa Luzia, por intermédio de uma tia emprestada. Quando vim para cá, encontrei a família do meu pai e fui muito bem recebida”, conta. No período anterior à regularização dos empregados domésticos, Andréia, na insegurança dos dias, por dois meses, após alugar a casa, trabalhou num cinema e também fazendo faxinas. Ao ser contemplada com o apoio estudantil e bolsas de treinamento profissional, Andréia passou a se dividir entre estágios, aulas e faxinas. Algumas nas casas dos colegas de faculdade. Na primeira aula, lembra, a professora pediu que cada aluno escrevesse a sua história para que um colega lesse. “Não sabíamos quem era quem. A gente estava se conhecendo. Primeiramente, levei um susto muito grande, porque achei que, por ser noturno, fosse encontrar mais gente da minha idade e que trabalhasse. Todo mundo era menor de idade, e eu tinha 23 anos. O exercício era escrito por um e lido por outro. Contei que trabalhava como doméstica, morava com uma senhora, e, quando leram a minha história, a professora ficou assustada e depois perguntou quem era. Levantei a mão”, diz. “Tive medo de ficar isolada, por não ter tempo de me enturmar, saindo com eles, mas fui muito bem recebida. Todo mundo entendia o fato de eu não ter muito tempo para fazer trabalhos. Consegui entrar no ritmo dos meus colegas”, pontua ela, que não integrou o fundo de formatura, mas foi convidada para os eventos públicos e lembrada pelos professores. Na colação de grau oficial, os pais, que não gostam de viajar, ainda que muito orgulhosos, não vieram. Os vizinhos representaram a família de Andréia. Seu trabalho final retratou as telenovelas, paixão que a menina cultivou desde que, aos 9, viu a primeira televisão adentrar sua casa. No primeiro emprego como jornalista, a mulher de sorriso fácil assumiu a assessoria de comunicação de um espaço cultural. E fez especialização. Poucos anos depois, foi aprovada no mestrado e pesquisou um grupo de memória de sua Bias Fortes natal. “Tenho a ideia de partir para a área acadêmica”, afirma ela, que hoje atua na área de atendimento do Centro de Políticas Públicas e Avaliação da Educação (Caed), da UFJF. “Gostaria de me tornar professora”, espera ela, que ensina seguindo em frente.