“O personagem do Rei Momo é naturalmente muito rico”, aponta Caio Dias Baptista sobre a figura coberta de brilhos e plumas, que ostenta coroa na cabeça e chave nas mãos. Simbolicamente, é o dono da cidade durante os dias de carnaval. “O meu é rico assim por ajuda”, pontua ele, que recebe contribuições de foliões e antigos reis momos da cidade para assumir, pelo segundo ano, o título. “O Rei Momo é muito feliz, alegre, rico e não tem problemas. Já o Caio é muito diferente, mas mesmo assim não deixa de sorrir”, assegura o jovem de 25 anos, nascido e criado na Vila Olavo Costa, próximo da quadra da escola Juventude Imperial, onde deu seus primeiros passos no samba. No projeto Curumim de seu bairro, Caio participou das oficinas de teatro e integrou a companhia formada com alguns alunos da turma. Com o Ao Vivo – Contadores de Histórias, da professora Luciane dos Reis, viajou para festivais em Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo. Mais tarde integrou outro projeto social, a Casa do Pequeno Artista. Prestou o serviço militar e, ao sair, tornou-se educador no Centro Pop, voltado à população em situação de rua, onde ministrou, por dois anos, oficinas de teatro. Em seu primeiro concurso para Rei Momo, em 2017, Caio viu que muitos dos assistidos pelo local formavam a plateia e torciam por ele. Naquela vez ficou em segundo lugar. Dois anos depois tornou-se Rei com outras riquezas para além dos brilhos e plumas. “Ser preto, pobre, favelado e gay foi uma mola propulsora para mim. Eu tenho a capacidade de ser o que quiser”, diz, incisivo, a duas semanas de sua festa de formatura como bacharel em direito. “Na minha vida quero chegar a um mestrado em Coimbra, Portugal. Esse é meu grande sonho. Quero sair da favela e pisar em Portugal.” Pisar e sambar.
Enredo
Alessandra, a mãe, era adolescente quando desfilou pela Juventude Imperial. Ela frequentava a quadra, mas a verdadeira paixão pelo carnaval é própria de Caio. “Essa coisa de ir para desfile, entrar numa escola e sair na outra é coisa minha”, ri ele, que entre os 15 e os 18 anos tornou-se evangélico e se afastou da folia. Há seis anos é espírita. Mesmo tempo em que a vida se transformou num bloco de tristeza e pé no chão. “Perdi minha mãe quando tinha acabado de completar 18 anos”, conta ele, que no mesmo 2012 sofreu uma sequência de irreparáveis perdas. Um tio muito querido, casado com uma tia de Caio, foi diagnosticado com cirrose hepática e morreu. A avó, assustada com a notícia, teve um infarto fulminante meia hora depois de saber do ocorrido. “Tive dois velórios no mesmo dia”, lembra. Toda a família estava ainda muito abalada quando a mãe identificou manchas roxas pelo corpo, foi internada por algumas semanas até receber o diagnóstico de leucemia. Em menos de quatro meses Caio enterrou, também, a mãe. “Minha irmã tinha um filho de meses ainda (hoje tem dois filhos), então, comecei a sair para trabalhar. Fui entregar panfleto, fui propaganda viva, auxiliar de padeiro, nos Correios, auxiliar de lanchonete e fui oficineiro de teatro. Eu não sabia nada de serviço. Minha mãe não deixava a gente trabalhar. Por ter começado a vida trabalhando muito cedo, se mudando para São Paulo para ser empregada doméstica, queria que a gente estudasse. O sonho dela era me ver concluindo o Ensino Médio. Hoje, se ela estivesse aqui, andaria com uma foto minha contando para todo mundo que eu vou ser advogado”, narra, com lágrimas nos olhos. “Minha mãe foi um exemplo para nós de que não podíamos desistir”, diz. “Da minha infância eu me recordo muito de ver a minha mãe saindo de manhã cedo para trabalhar e deixando a gente em casa. Quando ela ficou desempregada, passamos muito aperto. Eu via minha mãe acordando às 5h30 para ir para a porta do mercado esperar os produtos que já estavam vencidos serem colocados para fora. Antes que o caminhão de lixo passasse para coletar, ela pegava e levava para a gente. Em dias que não tinha pão, nem nada, ela fazia fubá suado com água e açúcar. Assim ela foi criando a mim e minha irmã, com muita dignidade.”
Evolução
Na infância, o sonho era ser biólogo ou cozinheiro. Quando o vestibular se aproximou, o direito surgiu como maior interesse. “Tentei na UFJF, mas não consegui. Aí fui para a particular”, conta ele, que passou alguns apertos até se formar. “Foram muitos”, corrige. “A vida sem mãe ficou muito mais difícil”, acrescenta. “Tive dias de sair da minha casa na Vila Olavo Costa para parar, a pé, na faculdade no Morro da Glória. Depois eu saía de lá, ia para a Defensoria e retornava à noite para estudar. Tinha dias que o café da Defensoria era minha única refeição”, lembra. Nos últimos anos, Caio foi estagiário na Defensoria Pública. Como o trabalho era voluntário, depois de quatro meses ele se reportou à defensora e contou da dificuldade em seguir adiante. “Ela me perguntou do meu pai e eu contei que ele era funcionário público, trabalhava no quartel. Ela, então, me disse para pedir pensão para ele. Foi uma conversa superamigável e, agora que eu terminei, vai encerrar. Não era um rio de dinheiro, são R$ 400 para eu viver o mês inteiro. Eu tenho que rebolar. Não passo fome, mas também não tenho luxo”, afirma ele, que atualmente estuda para a prova da Ordem dos Advogados do Brasil, a OAB. “Vou precisar conciliar o carnaval e a prova, porque ela acontece em março”, ri. Pelo título, o Rei Momo, recebeu, em 2019, R$ 1 mil, e para este ano aguarda a liberação de R$ 1,5 mil, para estar presente em todas as atividades oficiais. “É pelo amor. Hoje represento todos os segmentos, não só as escolas, mas os blocos, as festas em salões e aquela bateria lá no alto do morro. Em qualquer som de carnaval, eu estou.”
Alegoria
No início da juventude Caio se interessou em representar a Corte local. “Sempre gostei muito de samba, de festa, dessa euforia. Porque não representar o carnaval da minha cidade? Eu não sabia sambar nada e era uma pessoa totalmente desengonçada. Fui me preparando”, diz ele, um dos mais novos reis momos da cidade e, certamente, também um dos mais magros. Caio pesa 97kg e mede 1,79m. “Nossa cultura tem o imaginário do Rei Momo como uma figura obesa que mal sabe sambar. Isso é uma questão histórica, que começou na Grécia e durou até 2013, tanto que nos editais um dos pré-requisitos era ter acima de 120 kg. O Ministério da Saúde entrou no meio apontando que estimulava a obesidade. Depois disso passou-se a ter reis momos mais magros. É bom mudar essa história”, defende Caio, que chegou a emagrecer com a festa do ano passado. “Era uma batida acelerada, de um lugar a outro. Saí realizado, mas cansado.” Em 2019 ele também pisou pela primeira vez na Sapucaí, atravessando a avenida na lavagem do Sambódromo, que marca a abertura oficial da folia carioca. “Foi uma das melhores experiências que eu tive”, diz o jovem, cuja lembrança mais remota do carnaval de Juiz de Fora é a do desfile na Rio Branco, lugar que fez-se passarela, pela última vez, entre os anos 2000 e 2005. Rei Momo justamente em anos sem desfiles, Caio não terá passarela para atravessar este ano. “Fui criado com aquela história de que o nosso carnaval já foi um dos melhores do Brasil, e hoje vê-lo assim é triste, mas carnaval não é só a avenida. A gente idealiza o carnaval de penas, plumas, patuás, carros alegóricos, fantasias, mas ele vai além disso. Os desfiles duram só dois dias e todo o resto são os blocos e as festas. Quero ser o incentivo para que os desfiles voltem”, sugere ele, que na Juventude Imperial atuou como assessor carnavalesco e alegorista, além de ter integrado as comissões de frente da Mocidade Alegre e da Feliz Lembrança. “Hoje o carnaval vai resistir comigo, com minha rainha e minhas princesas. Todo mundo quer um bom carnaval. E ele começou no morro, com os negros, sem desfile e sem plumas, era um bloco, uma forma de as pessoas dizerem que existiam e queriam se divertir também.”