De tão baixo, o presente queria mesmo era ser ausência. Quando o professor fazia chamada, Tiago Capuzzo logo ficava vermelho, queria sumir. “Não era timidez, era medo”, diz ele, que das escolas públicas por onde passou recorda-se de ouvir piadinhas a seu respeito, muitas. No futebol era o último a ser escolhido. Na queimada, o primeiro. “Se eu não tivesse uma cabeça boa, talvez não seria quem sou. Tirei forças para seguir”, comenta ele, que aos 35 anos reuniu a segurança necessária para transformar as palavras que o ofendiam em característica dita com orgulho. “Viadinho, pintosinha, afeminado. Sou muito bem resolvido comigo mesmo. Sou o que sou”, assume Tiago, fortalecido para quaisquer chamadas. “É Tiago e não é com h de homem”, ri.
“Quando eu era criança, podia pôr uma bermudinha de tactel e uma regata que já falavam: ‘Aquele ali é viado!’. Eu tinha o cabelo escuro e a sobrancelha também, mas falavam. Sofri muito preconceito. Eu parecia uma menina. Sempre gostei da Xuxa. Nunca fui uma criança discreta, de brincar de carrinho ou bola. Brincava com as bonecas das minhas primas, que eram mais velhas que eu. Sempre dei pinta. Tocava um disco, e eu dançava. Mas tudo escondido. Eu sabia que estava dando pinta, mas não tinha como disfarçar”, conta ele, que na adolescência, começou a se calar. “Nunca fui o popular da escola. Eu usava aparelho, óculos, era cheio de espinhas e ia para a aula tentando colocar a roupa mais discreta possível. Acabava a aula, eu alugava oito filmes na locadora e assistia no quarto. Eu me fechava no meu mundo”, recorda-se. “Antigamente, não existia nem a palavra bullying, mas o preconceito, sim. Não sou fruto de uma escolha. Nasci assim.”
Nas memórias de infância de Tiago estão os sábados em que descia o Calçadão encantado com as drag queens que lotavam o lugar nos preparativos para o Miss Brasil Gay, espetáculo que os pais assistiam da plateia. No próximo sábado (17), a mãe estará mais uma vez de olho no palco, por onde entrará o filho vestido de Titiago, personagem criado em resposta às muitas tentativas de constrangê-lo. No dia seguinte, domingo (18), ele se apresenta na Praça Antônio Carlos, na programação do Rainbow Fest, no qual é a Rainha do Orgulho Gay. Tiago está mais presente do que nunca. “Com minha arte drag, criei um escudo para combater o preconceito, para falar e mostrar que estamos aqui para ser feliz da forma como quisermos.”
As lacradoras
Na cabeça do Tiago criança e adolescente, apenas ele sentia atração por uma pessoa do mesmo sexo. “Eu achava que só eu era mais afeminado, pintosa. Aos 17 anos, um amigo do trabalho da minha mãe me chamou para sair. Enrolei por uns quatro meses e num domingo fui. Descobri que existiam pessoas com o mesmo medo que eu. Comecei a viver”, lembra ele, que aos 23 anos iniciou um namoro que duraria quatro anos e a descoberta de outro mundo. “Namorei uma drag queen. E me realizava nela. Nunca tive vontade de me montar”, conta. O desejo, no entanto, mudou quando a relação chegou ao fim, e uma casa de shows convidou Tiago para uma performance. Há oito anos, subiu no palco pela primeira vez, ao lado de dois bailarinos, para dublar a norte-americana Kesha. Da segunda vez, escolheu a também norte-americana Britney Spears. “Eu era fanático nas Spice Girls. Amor até hoje”, diz ele, que além de dublar cantoras pop também canta autorais, como “As lacradoras”, “Você quer?” e a recente “Posso ser”. Na visibilidade e na arte, Tiago encontrou novo dilema. Uma vez mais enfrentou. “Todo dia a gente tem que estar preparado para os olhares quando saímos de casa, para o julgamento das pessoas, para o preconceito. Não sou uma pessoa básica, já chamo atenção, então, saio de casa preparado, mas o maior preconceito que sofro é dentro do próprio meio gay. Existem as diferenças de tribos: a travesti que não gosta do gay discreto, o gay discreto que não gosta da drag”, lamenta. “É uma coisa que luto para mudar.”
Você quer?
Seis meses depois da primeira balada LGBT+, Tiago começou a namorar. A mãe, Sandra, ainda não sabia. Quando ele fez a sobrancelha, chamou a atenção dela, que dias depois chegou em casa e, ao mexer no armário do filho, encontrou cartinhas que ele trocava com o mesmo jovem que ligava para sua casa e ele identificava como sendo seu amigo. Confirmou o que já era suspeita. “O medo maior, de toda mãe, é da sociedade”, aponta ele. Um mês depois da primeira conversa, a mãe pediu que o filho chamasse os amigos para seu aniversário. “Ela viu que eram todos comuns, iguais. Tinha gente trabalhando para ser jornalista, advogado, nutricionista. A gente colocava música do Rouge e ficava dançando”, lembra. Hoje Sandra usa as maquiagens e roupas de Titiago. O irmão, Diogo, de 39 anos, o ajuda a se vestir e opina sobre as roupas. “Tudo o que peço para ela, ela faz. Me ajuda com as roupas. Os vestidos do show, meu e de oito bailarinos, ela está em casa bordando. Se peço para ela fazer uma piastra ou cachear uma peruca, ela faz com o maior carinho”, conta ele, que aos 7 viu os pais se divorciarem. “A gente vivia no luxo. Nossa casa era uma mansão, com piscina e tudo. Depois que eles se separaram, caímos, e nossa alegria era comer frango assado aos finais de semana. Nossa mesa da cozinha era uma mesa de bar. Minha mãe criou dois filhos sozinha”, emociona-se ele, que divide o apartamento no Bairro Bandeirantes com o irmão e a mãe, aposentada como gerente de um plano de saúde.
Posso ser
Os tutoriais de maquiagem que hoje inundam as redes sociais não existiam quando Tiago começou a se montar. “As pessoas achavam que eu era travesti, não entendiam que drag queen sai com água e sabão. A gente se monta na hora que quer. É menino durante o dia e, à noite, faz um espetáculo, como um palhaço, que se maquia e vai para o palco. Hoje em dia as pessoas sabem mais o que é, até por conta de artistas como a Pabllo Vittar. Gosto de viver nesses meus dois mundos”, diz ele, que no último ano foi fartamente visto nas telinhas. “Já fui jurado com a Ludmilla no programa da Xuxa, já fui no quadro ‘Dez ou mil’ do programa do Ratinho, já fui no Tom Cavalcante, já participei da propaganda da Canon que passava nos cinemas de São Paulo. Mas o que me alavancou mesmo foi o programa do Raul Gil, o quadro ‘100% drag’. Em todos os programas, eu ganhava cachê e a passagem de ônibus, mais o hotel. No Raul Gil, não. Fiquei em dúvida. Mas na última hora decidi ir. Cheguei à semifinal, minha mãe foi. Eu ia todo mês, e conforme eu aparecia as pessoas começavam a me seguir nas redes sociais e a me identificar nas ruas”, festeja ele, que aos 27 anos se formou em design de moda e desde os 20 atua no comércio, como vendedor. “Comecei cedo, trabalho desde os meus 16 anos. Comecei no escritório do meu tio despachante. Fiquei lá até os 18 anos e depois fui para a Embratel, onde fiquei mais dois anos. Corro atrás dos meus sonhos”, diz ele, que corre de salto ou sem salto, mas sempre com brilho.