No início, choraram com a própria chegada. Também choraram ao se tornarem mães. Mais tarde, voltaram a chorar, como avós. Pelos olhos e pelas mãos de Amaury Teixeira Leite Andrade passaram três gerações de mulheres e suas lágrimas da chegada. “Fiz cerca de 10.000 partos”, celebra, sobriamente, um homem que, de dentro de uma maternidade, testemunhou não apenas o começo como também a passagem do tempo, e com ele as transformações de uma sociedade revolucionada pelos avanços da medicina. “Houve um progresso fantástico, principalmente com a ultrassonografia, que nos ajudou bastante”, pontua o ginecologista e obstetra formado nos anos 1950 e aposentado seis décadas depois.
“Eu estava velho demais. Nos últimos anos, fiquei só dando aulas na Suprema. Quando comecei com um quadro de surdez, próprio da velhice, percebi que era hora de parar, deixando para a turma mais jovem tomar conta. Parar foi horrível, sinto muita falta daquele dia a dia, da luta tremenda”, conta ele, aos 87, cercado por livros e um computador, onde passa parte do tempo desde que se aposentou, há menos de dois anos. “Hoje invento o que fazer, faço fisioterapia e me distraio aqui”, diz ele, garantindo ainda se atualizar numa profissão que sempre lhe exigiu atenção máxima com o presente. Cada dia de trabalho representava o disparo num cronômetro. Um novo início.
“Sempre gostei muito de fazer partos. É uma satisfação. Depois de certo tempo, virou rotina, mas era sempre um desafio. Alguns eram muito difíceis”, recorda-se. “A medicina me trouxe muita satisfação, muitos desafios. Até hoje, leio e estudo na internet”, diz ele, mestre para diferentes gerações de profissionais, que o encontravam na Maternidade Therezinha de Jesus, onde exerceu diferentes facetas, ora era administrador, ora professor, ora pesquisador, e sempre médico. “Eu ainda atendia no meu consultório”, orgulha-se, apontando para as mais de oito mil pacientes que registrou em sua sala. “Gostavam de mim”, sorri o pai de cinco – os dois primeiros nascidos nos Estados Unidos, outros dois pelas mãos de sua assistente, Doutora Calina, e o último, pelas mãos de seu pai. Avô de nove e bisavô de duas, o homem que por décadas foi casado com a patologista Dinah, falecida em 2004, em sua descendência transmitiu o ofício para apenas um dos filhos, que especializado em ginecologista e obstetrícia, trabalha, hoje, comandando uma clínica voltada para exames de direção. “Acho que todos se cansaram de tanto ouvir eu falar em medicina”, ri.
No sangue
No início da carreira, o pai de Amaury, Dr. Dirceu de Andrade, não podia contar com os hoje tão populares antibióticos. “Ele pegou uma época ainda mais difícil. As pacientes, quando faziam cesariana, morriam com frequência. Eu, quando comecei a clinicar, já existiam os antibióticos, o que dava mais segurança”, conta. O pai também conheceu uma Juiz de Fora onde os partos ocorriam, apenas, em casa. “Eu mesmo nasci na nossa residência na Rua Benjamin Constant”, diz. “Havia uma pressão para ter uma maternidade na cidade. Meu pai e outros dois médicos, então, fundaram a Therezinha de Jesus, mas foi só ele quem ficou. Naquela época, de hospital, tinha a Santa Casa, mas ainda sem maternidade”, conta Amaury, único dos quatro irmãos a seguir o ofício paterno. “Desde cedo tive a ideia. Formei no Rio de Janeiro, na Faculdade de Ciências Médicas, hoje da UERJ, e fiz residência nos Estados Unidos durante três anos. Quando voltei, em 1958, comecei a trabalhar com meu pai. Ele dedicou a vida toda à maternidade. Morreu em 1966, aos 64 anos. Tive contato profissional com ele só durante oito anos. Quando ele já estava adoentado, assumi o comando da Maternidade. Era um abacaxi de todo tamanho. Trabalhei durante oito anos sozinho. Os partos quem fazia eram as parteiras. Se tinha problema eu ia. Naquela época não tinha anestesista lá. Era eu quem fazia a anestesia das cesarianas”, recorda-se o homem, cuja mãe, Marília Teixeira Leite de Andrade, dedicava-se à entidade vizinha do prédio da maternidade, no Bairro São Mateus. “Ela se dedicou à Obra Social Santa Mônica, atendendo gestantes solteiras. Foi ali que passou a vida inteira. A entidade funcionava como uma lavanderia e, assim, recebia recursos para dar assistência social a essas mulheres. Minha mãe morreu aos 92 anos, quando a Obra já havia acabado, porque em tempos recentes ninguém mais liga para as mães solteiras, acham natural. Naquela época, elas passavam apertadas, os pais não aceitavam.”
Na vanguarda
No início de sua trajetória profissional, Amaury sentiu-se impotente para, então, criar coragem e força para intervir. “A luta contra o planejamento familiar era terrível. Mas eu defendia baseando-me na demografia, de forma que as pessoas pudessem escolher quantos filhos queriam ter. Antigamente as famílias tinham mais de dez filhos. Minha avó teve 19. E eu defendia a ideia de programação da família. Com isso, conquistamos muitas coisas. Não se tratava de controle da natalidade, mas de orientação familiar, apresentando métodos contraceptivos. Hoje tem famílias que não querem ter filho. Diminuímos o excesso de natalidade e, agora, nos preocupamos com uma maior quantidade de idosos, já que a medicina evoluiu e a qualidade de vida aumentou”, ri ele, muitas vezes olhado de esguelha pelos conservadores. “A Igreja Católica sempre foi contra os métodos contraceptivos, mas outras igrejas aceitam”, observa ele, professor da primeira turma de médicos da UFJF. “Até hoje os métodos hormonais, as pílulas anticoncepcionais, são os mais usados no Brasil, mas tem a ligadura das trompas, a vasectomia, os dispositivos intrauterinos e alguns outros. Já analisei muitos DIUs que vinham da Europa, para testar e aprovar a circulação. A camisinha, até hoje, é o melhor método para não contrair doenças sexualmente transmissíveis”, argumenta o idealizador do Centro de Biologia da Reprodução da UFJF, em 1970. “Fazíamos estudos de reprodução animal e humana. Ainda existe. Ensinei os alunos a fazerem pesquisa. Não cheguei a fazer o bebê de proveta, era muito assoberbado para isso, mas fiz bebê de proveta em animal, em coelhos e ratos. Dava certo”, conta o homem que também se envolveu com a mais relevante entidade de saúde do globo. “Trabalhei muitos anos fazendo pesquisas para a Organização Mundial da Saúde (OMS) nas áreas de reprodução, fertilidade, contracepção e planejamento familiar. Na entidade, eu fazia parte do conselho diretor da área de reprodução humana, analisando pesquisas do mundo inteiro.”
Na pertinácia
No início e em todo o resto, gerir a primeira maternidade de Juiz de Fora exigiu um tanto de persistência e outro tanto de devotamento. “Como era uma entidade filantrópica, a diretoria não era remunerada. Contávamos com a amizade de colegas que se dedicaram. Sempre tivemos muitas dificuldades. Para construir o prédio da Avenida Independência (atual Avenida Itamar Franco), conseguimos um empréstimo na Caixa Econômica, que tinha um programa para financiar hospitais. Compramos o terreno e construímos o edifício. Quando houve a mudança de endereço, já tínhamos mais médicos trabalhando, e as parteiras pararam de fazer a função delas lá. Quase fechamos as portas em 2005 porque era só maternidade, uma única especialidade, o que é difícil para um hospital. Era preciso chamar médicos de outras especialidades quando havia uma complicação. Fora isso, o SUS pagava mal e atrasado, com um valor por parto muito baixo. Foi então que surgiu a oportunidade de fazer uma parceria com a Suprema, que assumiu o comando e a transformou em hospital geral. Hoje é um hospital de primeira e que ainda serve ao SUS”, comemora ele, que viu outras maternidades inaugurarem e o prestígio da que trabalhava manter-se o mesmo. Em quase oito décadas de existência, a casa fez mais de 150 mil partos, alguns a acordar Amaury. “Acordava de madrugada com frequência, não tinha hora para nada. Fiz muitos partos de madrugada, às vezes dois ou três”, recorda-se, certo de que alguns inícios são incontornáveis.