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Com paralisia cerebral, Nelson Cezar Reis se supera e lança livro com apoio da família

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Nelson aprendeu com a mãe, e marilu aprendeu com o filho. Ele tornou-se independente intelectualmente. Ela tornou-se psicóloga (Foto: Leonardo Costa)
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C – A – P – Í – T – U – L – O – 1. Com apenas um dedo, digita o “P”. Depois o “A”. Em seguida o “R”. Para concluir a primeira palavra, o “A”. E segue pelo “C”, logo o “O”, depois “M”, “E”, “Ç”, “A”, “R”. E formou o primeiro título. “Tóiiiinnn…” demorou muito mais para ser digitado do que lido. Com o dedo que uns ofendem, Nelson Cezar Reis escreveu “A caminho de Vênus… numa cadeira de rodas” (Gryphon Edições). Com o dedo médio o homem de 53 anos registrou sua vida gigante. “A ideia eu tinha desde pequeno. Eu mesmo digitei”, diz, orgulhoso estendendo a mão esquerda.

“Tem a opção de acessibilidade de que o mouse funcione no computador. Meu mouse é o teclado numérico”, conta ele, com a mão direita “guardada” ao lado do corpo. Há algum tempo foi preciso desligar os tendões da mão que auxiliava o “dedo escritor” por conta de uma tensão involuntária que só aumentava. Nelson superou. Como faz todos os dias. Como fez nos quase 20 mil dias em que não se deixou paralisado, a despeito do distúrbio que conheceu logo no início da estrada.

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“A paralisia é cerebral, atingiu a área do cérebro responsável pelo meu equilíbrio e pela coordenação motora”, explica. Consequência, segundo a mãe, da “displicência” de um médico que o atendeu com icterícia e ignorou. Não foram feitos exames, sequer o banho de luz ultravioleta. O amarelo na pele aumentou. Outro médico diagnosticou a lesão. Um terceiro apontou para a icterícia como a responsável pela paralisia. “Ele me disse que não adiantava nada ficar gastando dinheiro com tratamento, que não tinha jeito, que ele seria um ser vegetativo e que só precisava dar comida para não morrer”, emociona-se a mãe. Nelson começou a fazer fisioterapia. Um ano depois, Marilu retornou ao consultório do médico, que se mostrou surpreso com os avanços da criança, então já reconhecendo as cores e identificando objetos. Com o filho do médico, que acabou acompanhando-lhe durante toda a juventude, Nelson concluiu o científico. Ele não parou.

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Impulso

Marilu Cezar Reis e o marido Wilson Fiorenzano Reis encontraram, quando Nelson tinha apenas 3 anos, uma possibilidade de tratamento em Barbacena. “Um médico da Apae (Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais) de lá falou que se fundássemos aqui, ele nos dava apoio. Procuramos famílias, fundamos e recebemos apoio”, conta a mãe. O pai tornou-se o segundo presidente da associação local, que começou já com 30 famílias, reunindo-se num salão emprestado pela Igreja da Glória. “Uma estudante de medicina daqui, que terminava no Rio de Janeiro a graduação, veio para cá nos auxiliar. Recebemos a visita do Dr. Glenn Doman, médico americano responsável pelo método. Éramos nós, as mães e os voluntários quem fazia os exercícios. As crianças iam à Barbacena, o médico fazia uma avaliação e mandava a prescrição. Fazíamos tudo durante dois ou três meses e voltávamos à Barbacena. Era uma loucura. Eram vários exercícios, posição para dormir, cordas, uma estimulação cerebral fora de série. Isso desenvolveu muito a parte intelectual dele. A parte motora, não. Até os 6 anos, ele não sentava. Uma pessoa de São Paulo visitou a Apae em Juiz de Fora e disse que o tratamento ideal para ele era outro. Então fomos para lá. Ficávamos cinco dias, a médica fazia um programa, e eu fazia os exercícios nele. Em quatro meses ele já sentava”, emociona-se Marilu, narrando um cotidiano de pequenas e simbólicas conquistas. “Até os 12”, lembra Nelson. Na adolescência, Nelson e sua família procuraram profissionais locais. Ele não parou.

Estímulo

(Foto: Leonardo Costa)

Maisa era a caçula. Antes vieram Nelson, Vânia, Lúcia e Marcus, o mais velho. Todos os filhos do casal Reis estudavam. Nelson logo no primário foi aceito num colégio particular, bem recebido e querido entre os colegas. Bastou chegar o primeiro ano, e os padrões acabaram por indicar que o melhor era o menino receber instrução em casa. Quatro anos depois, o garoto ingressou no Colégio Nossa Senhora do Carmo. A mãe, num tempo em que não havia xerox nem computador ou câmera digital, copiava os cadernos dos colegas e ajudava escrevendo os deveres.

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As provas eram feitas fora de sala, com Nelson ditando as respostas. Tripudiava, Nelson?! “Não”, responde, rindo. No científico, o menino mudou-se para o Colégio Magister. A irmã mais nova, Maisa, havia atingido sua série e dividiu com ele o curso, reduzindo os esforços de Marilu, que já não precisava copiar os cadernos dos colegas do filho. Mas continuava a ajudar nos estudos. “Fiz a faculdade quando já tinha 50 anos. Tudo o que estudei com ele usei para fazer o vestibular, 32 anos depois de ter terminado o científico. Antes eu dava aula de corte e costura, por mais de 40 anos, com um método próprio. Hoje estou com 83 anos e exerço a psicologia desde os 55”, orgulha-se a simpática matriarca.

Wilson, o patriarca, aos 85, comanda uma indústria de autopeças e fabricação de máquinas para reciclagem. Enquanto os pais não estão em casa, acompanhantes cuidam de Nelson. “Quero viver minha vida independente deles aqui dentro de casa. Procuro fazer as coisas sozinho”, diz. Ele não para.

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Ânimo

Psicologia e direito foram os cursos escolhidos por Nelson para o vestibular. Reprovado em duas tentativas, acabou não insistindo. Também tentou ingressar no mercado de trabalho, mas sua reduzida independência não lhe permitiu. Durante algum tempo, logo que surgiu o DVD, Nelson passou a converter fitas VHS na nova mídia. “Nessa época, sofri um acidente. Caí de um ônibus adaptado”, recorda. Um dia, voltando para a casa, quando o ônibus parou num ponto próximo de casa, a plataforma do veículo adaptado, ao invés de descer, recolheu-se. O acompanhante de Nelson segurou a cadeira. Ele caiu, com o rosto no chão, no passeio.

“Fui com a mão, mas ela não se mexeu a ponto de proteger o rosto. Aprendi reações de proteção, mas não tive tempo”, diz o homem que fraturou o queixo e a mandíbula. Por quatro meses, permaneceu com uma faixa imobilizando o rosto, mas seus espasmos involuntários lutaram contra. “Depois, coincidentemente ou não, passei a sentir dores na escápula”, conta, referindo-se ao sofrimento que o levou, por diversas vezes, aos hospitais para tomar doses superlativas de morfina, que também são enviadas ao organismo por uma bomba implantada em sua barriga. O alívio para a dor intratável ainda não chegou. E ele não para.

Coragem

As portas e paredes da casa na Rua Dr. João Pinheiro estão corroídas. Frutos dos frequentes impactos da cadeira de rodas que Nelson comanda com a mão esquerda. Após a queda na rua, ele deixou de frequentar barzinhos e visitar amigos e familiares. Sai menos. Navega mais. Visita sites, redes sociais e lê muito, sempre digitando os livros que quem estiver por perto folheia. Assim escreveu suas memórias. “Foi bom lembrar das minhas aventuras na adolescência, dos meus amores, das vezes que tentei namorar e não deu certo, por vários motivos, principalmente pelo preconceito”, comenta, citando, ainda, o desejo de escrever mais e ter um programa de TV, propostas que versam sobre a inclusão. Emocionado, pergunto a Nelson: Como lida com suas limitações? “Estou satisfeito”, ele responde, numa coragem que se mistura com a resiliência que precisou exercitar ao longo de seus 53 anos. “Minhas limitações são como as de qualquer um. As pessoas têm limitações. Eu tenho as minhas. E cada um tem a sua. Tenho projetos, ideias, muita coisa na cabeça.” Ele não vai parar.

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