Algumas sorriem. Outras parecem desdenhar. Outras, ainda, guardam mistério no olhar. As bonecas de Nina Braga sentem. Muito. Feitas em tecido, pintadas como a representar a maquiagem, e criativamente vestidas, as “meninas” cujo arame interno possibilita sua articulação levam mais de dois dias para serem produzidas por uma artista que, quando menina, via a mãe fazer-lhe as bonecas. Nascida numa fazenda entre Ubá e Leopoldina, onde o pai era capataz, mudou-se ainda bebê, junto da família de nove irmãos, para Juiz de Fora, onde foi registrada.
“Minha mãe, quando esperava por mim, escolheu meu nome ao ler na revista o nome de uma pianista russa, mas recebi o apelido de Nina e escolhi usar o sobrenome do meu pai, que não consta nos documentos”, conta Sônia Maria Dias dos Santos, a mesma Sônia S que assina as pinturas da sala no apartamento do Bairro Teixeiras e a mesma Nina Braga, autora dos bonecos dispostos sobre as pilhas de livros no mesmo cômodo. “Sempre gostei de arte. Minha mãe sempre estimulou a contar história, a fazer bonecas. Mamãe explicava que pegava forquilhas, paus e cobria com pano. Eu tinha outras, mas as que mais gostava eram as que ela fazia. Ela bordava o rosto”, recorda-se a mulher de 69 anos.
Aos 17 anos, após a partida do pai, Nina seguiu para Porto Alegre, para a casa de uma tia, afim de estudar e trabalhar. No lugar, passados seis anos, conheceu Rubem Fontoura, outro nome presente nos quadros de sua sala. Com o médico ginecologista, casou-se, ganhou três filhos – Rodrigo, 45, Rafael, 43, e Laura, 31 – e a arte. “Eu queria ser pintora e quando conheci meu marido, ele me deu pincel e tinta”, lembra, referindo-se ao homem que caracteriza como “o suprassumo do gaúcho. Além da medicina, entendia de música e pintura”. Nina, que “gostava de costurar e fazer a própria roupa”, mergulhou, então, num universo sensível, de onde não mais saiu, ainda que em 1998 tenha voltado, com os filhos, para Juiz de Fora e, em 2009, tenha se despedido do grande amor. Da voz mansa, do jeito entre a humildade e a timidez, fez a vida tal qual suas bonecas, que no silêncio são capazes de muito dizer.
Pano, linha e agulha
Uns tecidos Nina precisa comprar. Outros ganha de costureiras e tinge. Depois costura o corpo e conhece a boneca nua. Pinta o rosto, faz o cabelo e as roupas e conhece a personalidade delas. “Dei aula para algumas pessoas e, pela boneca delas, dá para ver que fui eu quem ensinou, tem o molde meu, mas é completamente diferente das que faço, porque cada boneca tem a personalidade de quem faz. Pode ensinar, como minha mãe fez, mas cada uma tem uma assinatura. E não tem como simplificar para dar produção. Tudo que vira produto para a massa perde encantamento. Da forma que faço, cada uma tem a sua personalidade”, defende a artista, que há pouco mais de duas décadas, quando foi morar na gaúcha Canela, recebeu o estímulo para profissionalizar as bonecas que já fazia para a escola da filha. “Uma amiga minha era bonequeira e me incentivou. Eu não queria fazer concorrência com ela. Mas quando ela se mudou para Porto Alegre, deixou comigo uma revista. Fiquei um ano namorando aquilo até que resolvi fazer. Quando mostrei a ela, ouvi: ‘Não disse que você seria bonequeira?'”, conta, sorrindo. “Naquela época, eu fazia decoração em malha de lã, que é o forte daquela região. Eu fazia o que hoje chamam de customizar.”
Voz, gesto e luz
Uma vez, enquanto fazia uma de suas criações, com a boneca sentada em seu joelho, sentiu que ela se mexia. “Achei que fosse cansaço, mas também acredito que existe uma magia. Acredito no que há de místico, porque o mundo é como uma caixa de pandora. É só abrir um pouquinho para que saia um monte de coisas interessantes de dentro”, afirma ela, que decidiu apostar nos gestos. “Lá em Canela, todo final de ano tem o Festival de Dança. Eu, fazendo customização, me ofereci para ajudar uma companhia que estava fazendo a montagem de ‘Pinóquio’. Foi deslumbrante ver os lápis coloridos, a baleia, a casa do Gepetto. Foi um escândalo, e, a partir dali, pensei que era o que queria. Sempre gostei da coxia”, conta. Desembarcando em Juiz de Fora, logo conheceu o saudoso ator e diretor Robson Terra. “Ele me inseriu no meio. Fiz cabeças, adereços e bonecos para ele.” Desde então, já produziu bonecos para os Contadores de Histórias do Granbery, para a Cia. de Atores Academia (com as peças “Vô Candinho e seus bonecos” e “Peter Pan”) e para o recente espetáculo “Qual a cor da sua vida?”, de Juliana James. Das figuras mais triviais às bruxas, passando pelos gnomos e duendes, Nina cria uma comunidade colorida que comercializa numa livraria da cidade, num espaço cultural e pela internet. Tudo com personalidade, mas sem nome. Tarefa para quem se encanta, diz.
Imaginação, liberdade e fé
Em Canela, a casa de Nina ficava no meio de uma floresta. “Como não dar abertura para a imaginação? Como não ter a liberdade para ver coisas que fazem parte do mistério da vida?”, questiona ela, “católica com abertura para o espiritismo”, dona de uma força que a faz superar a artrose nas mãos e uma violenta diabetes para continuar alinhavando a vida. “As minhas mãos, para pintar, já não dão muita conta. Quando a boneca é muito pequena, fica muito difícil”, comenta a avó de Anna Lua e do que está por vir. O mesmo tempo que lhe deu a própria família construiu distâncias. “Quando saímos de nossa terra e voltamos muito tempo depois, somos estranhos, não tem jeito”, diz. Também construiu silêncios, como o da pintura, deixada de lado por falta de espaço. Construiu, ainda, o desejo cada dia maior de ver sua arte fazer sentido aos outros como faz a si mesma. “É uma forma de expressão que eu gostaria que fosse o meio de vida.”