Nossa Senhora das Graças, Nossa Senhora da Aparecida e Nossa Senhora do Carmo estão no desenho impresso em papel brilhoso ao centro, ao lado de um jarro com lírios brancos. À direita, está a imagem do Sagrado Coração de Jesus, um calendário, uma cerâmica nordestina de um homem sobre um jumento, um Papai Noel em miniatura, um vaso com motivos clássicos, uma fotografia com a tia idosa e uma pequena réplica de um castelo que visitou na Baviera. À direita, está uma fotografia do pai, dois castiçais, um vaso com rosas de plástico. Ao centro, ainda, estão registros de Padre Pio, uma escultura em madeira de Padre Cícero, São José feito em cerâmica, dentre muitas outras peças. No alto: uma clássica fotografia de Dom Pedro II sentado, com longas barbas. Ao lado e no mesmo tom da moldura dourada, está uma placa em alto relevo com o perfil do imperador e, mais embaixo, um registro de dona Amélia, segunda esposa de Dom Pedro I e madrasta de Pedro II. O altar no canto do sebo de Jean Menezes do Carmo, na Galeria Salzer, é um retrato em símbolos do homem de 45 anos, mais da metade deles vividos entre os livros e no fascínio de um regime que conheceu enquanto assistia televisão.
“Desde criança, sempre tive uma paixão muito grande por livros e por tudo que se referia à antiguidade. Nas brincadeiras, os enredos tinham reis e rainhas. Quando criança, lembro-me de ter assistido ao casamento do Príncipe Charles com a Princesa Diana. Fiquei fascinado. Não acreditava que existiam aqueles cavalos, aquela carruagem, aquela cerimônia e muitas outras coisas que envolviam a monarquia. A partir de então, passei a ter fascínio pela Diana, o que logo me levou à monarquia brasileira e a outras pelo mundo. Eu, que estudava no Santos Anjos, durante o ginásio saía mais cedo do colégio e ficava na Biblioteca Municipal lendo livros sobre o assunto”, recorda-se Jean, nascido em São João Nepomuceno, filho mais velho do encontro entre Carmos: Maurilo Agostinho do Carmo e Maria do Carmo Menezes. Aos 6 anos, ele se mudou com a família para Juiz de Fora, deixando para trás o tradicional Bar São Jorge e parentes como a tia, de quem a saudade faz com que ele cruze, quinzenalmente, os 65km que dividem as cidades.
Na juventude, durantes as férias na terra natal, Jean ouvia da tia, professora normalista, as curiosas histórias do período imperial. “Ela dizia que a família real queria voltar a governar o Brasil. Fiquei tão fascinado que participei do plebiscito de 1993, fazendo campanha pela monarquia. Também passei a conhecer os membros da família imperial brasileira, com a qual me correspondo”, narra. “Comecei a colecionar todo tipo de livro e me tornar uma pessoa que tem como hobby o estudo da monarquia. Assim fiquei conhecido nos meios monárquicos e históricos, tanto é que fui procurado pela Mary Del Priore, historiadora, que já me agradeceu em diversos livros. Tenho relação com outros escritores brasileiros também”, acrescenta ele, que em 1991 assistiu à criação dos círculos monárquicos nacionais, inclusive o de Juiz de Fora, o segundo do país, e do qual, sendo vice, tornou-se presidente após a morte do presidente Ohannes Kabderian Júnior, no final de setembro. As reuniões da instituição, mensais, costumam mobilizar entre 20 e 30 juiz-foranos. Mas os números sobem, segundo Jean, quando consideradas as redes sociais do grupo.
Livros a favor da memória
Há 25 anos, Jean foi às ruas para defender o que ainda hoje, para ele, é o único caminho. “Até 1988, era proibido pelas constituições tocar no assunto de mudança de regime. Naquele ano, o chefe da casa imperial brasileira, o príncipe Dom Luiz de Orleans e Bragança escreveu uma carta aos constituintes pedindo que o povo pudesse ser consultado sobre a forma de governo. Isso foi aceito, e assim foi feito em 1993. A própria república, porém, não explicou o suficiente às massas sobre o que significava o presidencialismo, o parlamentarismo e a monarquia parlamentarista”, lamenta ele, que ainda assim viu dez milhões de brasileiros votarem pelo retorno da monarquia. “É algo inédito, para a época e por não sermos um partido. A monarquia é um regime que está acima dos poderes, o soberano pende para o governo que represente o povo, respeitando a escolha popular, o compromisso dele é com o povo. Quando, por exemplo, uma pessoa faz reverência à Rainha Elizabeth não faz à senhora apenas, mas à Inglaterra. O soberano personifica o país”, explica. “As pessoas estão acostumadas com o modelo inglês, mas tivemos um modelo brasileiro como o que ocorreu com o Imperador Dom Pedro II, um homem aclamado por todos, principalmente hoje, que a historiografia nacional está mais aberta e rica. Há um interesse atual pela nossa história, haja vista a quantidade de publicações, romances históricos, biografias, com o nosso passado. Daí e com os insucessos da república, vemos o crescimento dos monarquistas no país. A China, que pirateia tudo, já está fazendo bandeiras monárquicas, dada a procura no Brasil”, comemora, defendendo a soberania dos Orleans e Bragança.
Livros contra a ignorância
Há mais de 35 anos, a letra de Jean era um garrancho que o colégio católico onde estudou ajudou a tornar um “bordado”, palavra sua. “A Irmã Carminha, que hoje mora na sede da congregação dos Santos Anjos, na França, nos admoestava, citando o livro ‘O pequeno princípe’. Naquele tempo, qualquer atitude incorreta fazia com que as irmãs nos chamassem a atenção para um aperfeiçoamento”, recorda-se ele, que não se lembra, no entanto, de ter sido confrontado a leituras múltiplas do período imperial. “Com a queda da monarquia, houve uma desconstrução dos personagens históricos da época. Todos os personagens, de Dom João VI a Dom Pedro II e a Princesa Isabel, são tratados com total falta de respeito e até como chacota. Isso foi desde os primórdios da República, nos próprios livros didáticos, que colocam Dom Pedro II representado como um velho, associando o regime monárquico a uma decrepitude, o que não se justifica. Em relação à abolição da escravatura, a monarquia tinha como projeto ressarcir os fazendeiros e assentar os negros escravizados, o que a República não fez. A primeiras favelas que surgiram, no Rio de Janeiro, é fruto de um problema que a monarquia não pode resolver, como muitos outros fatores. É importante que as pessoas tenham em mente hoje que não precisam estar ligadas a uma república que não correspondeu às nossas necessidades”, sugere, trazendo para o presente o mesmo olhar: “Um país que não respeita um museu, não respeita o ser humano. Considero a tragédia do Museu Nacional como o romance da Agatha Christie, ‘Assassinato no Expresso do Oriente’: o personagem assassinado foi morto por todos os outros personagens, e o Museu Nacional também teve vários assassinos. Sou indignado com a forma como o nosso patrimônio é tratado, haja vista o Museu Mariano Procópio, há dez anos fechado. Isso representa uma geração que desconhece a força do museu e de sua função didática”. Dono de uma voz forte e segura, Jean enfatiza: “O Brasil não é só a porta de casa para dentro”.
Livros como ganha-pão
Há cerca de 30 anos, Jean empregou-se como guarda mirim. Era preciso ajudar a casa que sobrevivia com a venda dos salgados e outros quitutes feitos pela matriarca. Pouco tempo mais tarde, de frequentador passou a vendedor da Livraria Flamingo. “Foi uma escola para mim. Quando os sócios se separaram, a livraria foi reestruturada, e eu, com uma colega, saímos para abrir nossa própria livraria, que é a Camões (ao lado). Minha tia, que sempre me apoiou, também entrou na sociedade. Foi outra escola de vida. Depois de um tempo, a sociedade acabou, e comecei do zero. Aluguei uma loja no início da galeria, mas não sabia qual nome dar à livraria. Resolvi homenagear o imperador Dom Pedro II, porque na nossa história do Brasil, de nossos estadistas, quem foi mais apaixonado pelos livros e quem teve a maior biblioteca particular do país foi ele. Tanto é que, quando houve o golpe militar de 1889, estando ele na Europa, legou sua biblioteca ao Brasil. E seus livros foram divididos entre a Biblioteca Nacional e a coleção do Instituto Histórico Geográfico Brasileiro, além de uma parte ter sido doada ao Museu Nacional e, segundo consta, esses livros de história natural foram queimados”, comenta o livreiro, que depois de 16 anos viu o aluguel subir e crescer seu acervo. No final do ano passado, passou para a loja da frente, com foco para títulos escolares, o que já representou “época de ouro para as livrarias de Juiz de Fora”. Mais ao fundo, numa ampla loja, funciona a alma do projeto de Jean. “Essa loja aqui é antiga e já abrigou a Sociedade de Belas Artes Antônio Parreiras. Depois disso, funcionou como sede de um curso e de um restaurante. Quando ficou vaga, vim olhar e fiquei encantado”, conta ele, que teve espaço para expor quadros e também vender discos e DVDs, além de obras mais raras. “Toda livraria tem a cara do dono. Ele imprime seu gosto no espaço. A concorrência aqui existe, mas é saudável, por que cada um dá o tom no seu comércio. Eu aprecio muito os livros antigos, é uma paixão, mas tem sebos que não se interessam por isso. Assim nos diferenciamos”, ressalta, citando outra característica que o destacou na galeria conhecida por seus sebos: “Comecei a abordar as pessoas na galeria. Como estava sozinho com minha tia, acabava de atender, ia para a porta e chamava as pessoas: Livros! Livros! Livros! As pessoas entravam e compravam.”
Livros em vez de remédios
Atualmente, o movimento on-line supera o presencial na Livraria Dom Pedro II de Jean. “Tenho guardada a carta do criador da Estante Virtual nos convidando para participar. Naquela época, eu não imaginava no que se transformaria o mercado. A Estante Virtual é uma vitrine para o Brasil e o mundo. Hoje todos os livreiros precisam estar lá. Antigamente, os intelectuais, pesquisadores e leitores de lugares distantes tinham que viajar para as capitais Rio e São Paulo para visitar os sebos, dada a dificuldade da disseminação dos acervos pelo país. Hoje, a internet democratizou esse acesso e impediu que muitos livreiros fossem à falência. Mas nada substitui a ida a uma livraria. Esse hábito é primordial. Hoje temos, não só em Juiz de Fora, mas na nossa sociedade em geral, uma enormidade de farmácias. As livrarias, no entanto, são as farmácias da alma. O livro é um companheiro ao longo de séculos e séculos”, defende o profissional autodidata, que “ainda não passou por uma faculdade”, reivindicando a redução dos impostos que envolvem os livros e um maior trânsito dos mesmos pelos países lusófonos. “O mundo dos livros é infinito, nunca sacia. Sempre tive livros em casa, e meu maior prazer é comprar ou receber livros. Gostaria de ler mais, infelizmente não tenho tanto tempo. Como diz o Jorge Luis Borges, o paraíso deve mesmo ser uma espécie de biblioteca.”