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Dona de si e das tranças todas: a jovem e empoderada Keila

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“Misericórdia se eu tiver que passar uma chapinha agora! Não dá!”, brinca Keila Fernandes, jovem que encontrou nas tranças um caminho para seu empoderamento como mulher negra. (Foto: Felipe Couri)
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Era muito pequena e frequentava salões de beleza. Era como uma imposição, uma condição de existência. Keila Aparecida da Silva Fernandes recorda-se de toda uma rotina que se formava ao redor do cabelo que deveria ter. O que tinha, ela e muitas outras negras e negros cresceram ouvindo que não deveriam ter. “Por mais que minha mãe não tivesse uma condição (financeira) boa, ela fazia de tudo para arrumar meu cabelo. E quando chegava ao salão, as mulheres falavam que tinha que cortar, porque eu tinha cabelo morto. Nunca tive muito cabelo, nunca foi grande, mas sempre foi muito volumoso. Eu fazia progressiva, usava chapinha, e nada ficava bom. Aos 15, decidi colocar a trança e me libertei da química. Mas foi temporariamente. Passei um ano de trança, depois relaxei o cabelo, e ele caiu. Meu cabelo não aguenta química. O cabelo crespo geralmente é muito fino e não aguenta muitos produtos. Por isso não vemos tanta gente com cabelo crespo e longo. Sempre cai com muita química. Trancei de novo, tirei, fui em um salão e pedi o cabelo vermelho, mas depois de um mês caiu tudo novamente. A maioria das histórias das minhas clientes também é assim. Coloca, tira, passa alguma coisa, cai, cresce, trança. Eu troco de cabelo igual troco de roupa”, narra Keila, que na última semana usou um longo aplique de cachos até voltar à trança, comprida e loira, amarrada num coque no alto da cabeça. “Misericórdia se eu tiver que passar uma chapinha agora! Não dá!”, brinca a jovem de 19 anos que num quartinho pequeno em casa ergueu o Salão Negratitude. “Estou com dois projetos que estão acontecendo bem devagarzinho. As meninas todas querem trançar, e eu quero dar cursos e vender material para fazer a trança, como o jumbo (a fibra), a pomada, gel, xampu, touca para ajudar não só a fazer trança, mas a fazer tranças bonitas”, aponta. Quando olha para frente, o que se imagina fazendo? “Eu me imagino com uma linha de produtos, um centro de formação de tranças e dando workshops a rodo”, responde ela, que neste domingo (6), participa do evento Encrespa Geral, de valorização da cultura negra, no Centro Cultural Dnar Rocha, no Bairro Mariano Procópio.

“(No futuro) eu me imagino com uma linha de produtos, um centro de formação de tranças e dando workshops a rodo”, Keila Fernandes. (Foto: Felipe Couri)

Prática de arte

Na internet, Keila via tranças norte-americanas, muitos modelos, e pediu para que uma prima fizesse nela. Com outra prima, Keila começou a trançar para outras pessoas. Mas não deu certo. “Um dia, pegamos uma menina para trançar e cobramos R$ 60, R$ 30 para minha prima e R$ 30 para mim. Parti o cabelo ao meio, e cada uma ficou com um lado. Quando terminou de trançar tudo, o que fiz ficou lá embaixo e o da minha prima, aqui em cima”, conta, apontando a diferença nas alturas. “Ela tinha preguiça de trançar. Não fazia porque gostava. Comecei a brigar com ela, a moça ficou muito nervosa porque a gente estava discutindo e pediu para deixar para lá, que ela mesmo iria consertar. Fomos embora, e depois disso não trancei mais com a minha prima”, lembra, rindo. “Eu gosto de trançar e sempre quero entregar um trabalho perfeito. Comecei a trançar sozinha, e demorava horrores. Teve uma vez que demorou 12 horas. Comecei às 8h da manhã, era 12 de outubro, tinha festa na rua, e eu nem consegui ir.” Hoje a mãe, que era empregada doméstica, ajuda, e as tranças que demoravam sete horas, agora, levam metade do tempo para serem concluídas. Ela trança até onde vai o cabelo da pessoa, e a mãe faz o restante, trançando apenas a fibra que pode ser no tom do cabelo ou em outras cores. O diferencial de Keila, inclusive, tem sido o domínio da técnica, seja para fazer a trança boxeadora, a grossa, a fina, a gana ou a de rabo, trabalhos que podem custar entre R$ 25 e R$ 200.

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“Eu gosto de trançar e sempre quero entregar um trabalho perfeito. Comecei a trançar sozinha, e demorava horrores. Teve uma vez que demorou 12 horas”, Keila Fernandes. (Foto: Felipe Couri)

Rotas de fuga

Nascida e criada no Bairro Esplanada, vive com os pais e dois irmãos, ambos mais velhos. “Eu brincava horrores. Minha mãe não deixava eu ficar na rua por nada, mas eu ia, e ela me buscava e me dava uns tapas. Nunca fui de estudar, não”, lamenta a jovem, cujo pai atua na reprografia do Colégio João XXIII, onde ela estuda desde o sexto ano. Após duas reprovações, Keila está no segundo ano do ensino médio. “Quero concluir para poder me dedicar mais às tranças. Por mais que eu saiba muita coisa, nunca fiz um curso. Aprendi tudo no YouTube. Conseguindo encerrar os estudos, vou poder sair para fazer cursos fora, workshops e me aperfeiçoar”, pontua ela, há um ano matriculada num curso de cabeleireira no Instituto Embellezze, onde passa suas tardes. Todos os dias trança cabelos, inclusive aos domingos. “A maioria das pessoas tem folga aos finais de semana”, justifica a “trancista”, entusiasmada, mostrando a fotografia do cabelo de uma garota de 15 anos que se tornou órfã, viveu grandes dificuldades e entrou em depressão, o que, por consequência, fez com que perdesse todo os fios. Keila conseguiu trançar a partir de alguns milímetros de cabelo. Não cobrou. Em troca, ganhou um sorriso e um abraço apertado. Outra vida começava ali. As tranças têm esse poder, ela defende. “Sei da história que quando os escravos iam fugir para os quilombos, as mulheres trançavam os cabelos com a rota de como chegar ao lugar. Era uma coisa só deles. A outra história que sei é que, para eles fugirem, escondiam grãos sobre as tranças para não passar fome.”

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“Sei da história que quando os escravos iam fugir para os quilombos, as mulheres trançavam os cabelos com a rota de como chegar ao lugar. Era uma coisa só deles. A outra história que sei é que, para eles fugirem, escondiam grãos sobre as tranças para não passar fome”, Keila Fernandes. (Foto: Felipe Couri)

Ponto de virada

Na escola, ouvia que o cabelo era feio. Por ser volumoso, era comparado a um repolho. “Quando cheguei ao João XXIII, foi um choque de realidade para mim. Eram muitas meninas de cabelo liso e roupa de marca. Meu pai tirou um dinheiro e me deu para eu colocar mega-hair e roupas de marca para eu me encaixar ali e me sentir bem. Mas, virava e mexia, acontecia alguma coisa comigo. No Dia da Consciência Negra do ano passado, eu estava descendo para o intervalo, caminhando pelo prédio, uma mulher me olhou e perguntou: ‘Moça, você trabalha aqui? Onde fica o núcleo?’. Eu mostrei para ela, que poderia ter perguntado para qualquer outra pessoa. Porque eu não poderia ser estudante? Quando acabou o intervalo, fomos falar sobre consciência negra, eu fui relatar isso, mas falar assim que acontece é muito difícil”, conta. “Infelizmente tive que me conformar que têm pessoas que são assim no mundo. Mas eu não dou moral para as pessoas fazerem isso de novo comigo. Eu sou muito dona de mim”, acrescenta, numa referência inconsciente à música da cantora Iza, símbolo da representatividade negra para a nova geração. “A gente tem que criar uma fortaleza para se defender desse tipo de pessoas”, comenta, ao lado da mãe, com quem insiste para que mantenha o cabelo natural, abrindo mão do alisamento que faz desde muito pequena. Este ano, na celebração do Mês da Consciência Negra, Keila foi convidada pelo colégio para uma palestra sobre as tranças e a ancestralidade. “Depois de um tempo, quando eu realmente fui me aceitar – porque tem um período em que a gente precisa aceitar que é negro -, eu passei a gostar de ser. Influenciei muita gente lá no colégio. A maioria agora usa trança, e cobro bem mais baratinho delas.”

“Infelizmente tive que me conformar que têm pessoas que são assim (preconceituosas) no mundo. Mas eu não dou moral para as pessoas fazerem isso de novo comigo. Eu sou muito dona de mim”, Keila Fernandes. (Foto: Felipe Couri)
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