Enquanto ele trabalha, lágrimas escorrem, uns se desesperam, outros se resignam. A terra que Altamir Rodrigues de Oliveira cultiva não faz brotar a vida. Algumas ervas daninhas, nada mais. O homem de 50 anos, pele marcada pelo sol intenso e pela lida diária, vincada pelos fardos, serve ao ponto final. “Muita gente, muitos colegas falavam quando eu chegava a algum lugar: ‘Olha o coveiro aí!’. Eu não ligava. Nunca tive vergonha. Quando entrei, era muito novo e achava que não fosse ficar, não fosse dar conta”, sorri, numa paciência equivalente à humildade e simpatia. “É um serviço bem bruto. Achei que não iria ficar tanto pelo peso, quanto pela choradeira das pessoas”, comenta ele, mais da metade da vida, 28 anos, passada num trabalho que lhe toma quase metade do dia, já que chega às 6h ao Cemitério Municipal e sai às 17h. “Não tem hora segura, porque às vezes pedem para atrasar o enterro, para esperar alguém de longe, e acabo atrasando para sair. Não é todo dia, mas é costume”, observa.
Antigamente, Altamir, o mais antigo funcionário do local, era ofendido. O trabalho duro, rejeitado por muitos e invisível a quase todos, rendia-lhe gritos de “Urubu!”. “Queriam bater na gente. Era uma tristeza”, conta. O que fazia? “A gente ficava cabreiro com isso, não dava para encarar, tinha que ficar quieto.” De vez em quando ainda aparecem uns que lhe pedem, sem o pudor da educação: “Joga a terra devagar porque senão você é quem vai para o buraco”. Altamir também silencia. Faz parte do ofício administrar os efeitos da dor alheia. Da mesma maneira, faz parte ter em mãos enxada e pá. A tecnologia ainda não chegou para o profissional. “Um coveiro fura o buraco, faz exumação, fecha a cova. Antigamente aqui era bem judiado. Tinha que pegar o defunto do portão e levar até lá em cima no morro”, recorda-se. “É uma profissão bem dolorosa, em todos os sentidos. Mas os anos se passaram, e eu ainda estou aí.”
Das saudades
Nascido e criado no Bairro Furtado de Menezes, Altamir pouco estudou e já aos 16 adentrava o Matadouro Municipal para trabalhar abatendo boi. Trabalho pesado, entre sangue e vísceras. Passaram-se alguns pouco anos e empregou-se num jardim, cujas flores escondem vidas, de nome Parque da Saudade, onde permaneceu por três anos. “Lá eu roçava a grama. Mas fui acostumando lá com o trabalho de coveiro, de ver os outros trabalhando. Via tirando ossada, ficava perto e fui aprendendo”, diz ele, aos 22 anos aprovado no concurso para auxiliar operacional, designado para o cemitério no Poço Rico. Hoje, Altamir é encarregado, coordenando uma equipe de dez coveiros. “São todos boas pessoas, entendem, não aborrecem. O ambiente já é pesado, então se as pessoas ficarem se aborrecendo a gente fica desnorteado”, conta ele, que aprendeu, ainda, uma ética própria daqueles que preparam a terra para receber o homem. “Quando o morto é da própria família, a gente não faz, pega um colega para fazer. Fica chato você mesmo fechar o túmulo ou a gaveta de um conhecido. É um troço constrangedor. Quando meu pai e minha mãe faleceram, meus colegas fecharam. Era gaveta”, conta, referindo-se ao casal que se encontra na Ala M. “Sempre que passo relembro, não tem como”, diz Altamir, que também enterrou amigos e outros parentes. “Nesses casos a gente só olha, sem jogar a terra.”
Das lágrimas
Numa semana, Altamir está em campo, cavando e fazendo enterros. Na outra, está fazendo e verificando a limpeza do espaço. Na semana de Finados, por exemplo, permaneceu na manutenção enquanto os floristas se preparavam para um dia atípico, a não ser no túmulo da menina Palmira, sempre bastante frequentado. Conta a história oral que, morta num acidente de trem, aos 17 anos, a jovem tornou-se reconhecida pelos frequentadores do cemitério como santa desde que seu corpo foi exumado, anos depois de ter sido enterrado, revelando-se intacto. Exumação, segundo Altamir, é das tarefas mais difíceis. “Às vezes, tem que exumar gente por conta de ordem judicial, pessoas com um mês ou dois. Já fiz muito isso. Tem que logo tomar banho para tirar o cheiro que fica, que gruda na roupa e só sai lavando. Já o ossos não têm cheiro”, pontua Altamir, católico que nem sempre se lembra de fazer uma prece ao começar o trabalho. “Sou muito de rezar não.” Fantasmas? “Não acredito muito não. Já fiquei, há muitos anos, nove dias trabalhando à noite. Não vi nada. Vi gato passando, gambá, mais nada. Dá medo não”, diz ele, que às vezes pega “bico” para limpar alguns túmulos: “É uma mixaria, mas ajuda”.
Do amanhã
“Para mim a morte é natural. Já me acostumei”, diz Altamir. “É triste, mas faz parte. Já me entendo muito com isso”, sorri, sem negar a compaixão. “Todo mundo se comove, principalmente se for criança. Adulto a gente ainda entende que tem que ir mesmo, mas criança mexe com a gente. Até hoje. Se eu for no sepultamento de uma criancinha e ainda tiver outra criança chorando, meu olho também enche d’água”, conta o marido de Andréa, ajudante de cozinha numa escola no Vila Ideal, e pai de três filhos – dois homens, de 30 e 26 anos, e a filha com 18. Também comove o homem enterrar aqueles que há alguns anos mantinham espaço demarcado no cemitério, os indigentes. “Uns chegam pelados, arrebentados, sem flores, porque não têm família, não têm nada.” Isso mexe com o senhor? “Mexe, sim. É ser humano”, emociona-se ele, que, seguindo a inevitabilidade da morte, trabalha sábados, domingos e feriados. “Acostumei. Se eu tiver parado em casa, fico inquieto”, brinca. Altamir, contudo, não fica parado. O tempo que tem dedica ao sonho que alimenta, correndo contra um relógio que conhece como ninguém. “Tenho o sonho de acabar minha casinha. Vamos ver se quando eu me aposentar dá. É assim, devagar, e os dias vão passando muito rápido.”