Mi, mi, fá, si, só, lá, dó, lá, sol, fá, ré, sol, mi, lá. Bastaram alguns acordes. “Ouve, é a minha música!”, aponta Chiquinho para as caixas de som de onde brota “Moonlight serenade”, executada pela banda de seu compositor Glenn Miller. Com as mãos a bailar no ar, ele cantarola a música para a qual Mitchell Parish escreveu uma letra eternizada na voz de Frank Sinatra. “Uma canção de amor, minha querida, uma serenata ao luar”, encerra a canção. E os olhos de Chiquinho estão marejados. Aos 73 anos, o homem de dedos finos e lisos, corpo frágil e uma genuína elegância transfere-se para os momentos em que a balada jazzística servia como trilha para a glória de sua Mademoiselle Debret de Le Blanc, a anfitriã do Miss Brasil Gay, concurso que ele criou e registrou há 42 anos e pelo qual responde, hoje, sua sobrinha Mirelle. “Eram outros, os tempos. Nós gays não tínhamos tanto espaço. E a personagem que interpretávamos no concurso era diferente da do dia a dia. Hoje posso falar que sou gay. Posso falar que sou Francisco e também a Debret Le Blanc. Hoje tudo é possível. E eu fui pioneiro”, diz, sorrindo. Queria ter nascido hoje? “Não”, responde, para logo acrescentar: “Minha época foi ótima.”
Chiquinho
Francisco Machado Mota nasceu em Rio Pomba, foi criado em Visconde do Rio Branco e, aos 23, mudou-se, com um amigo, para Juiz de Fora, ainda que seu desejo fosse transferir-se para a recém-inaugurada Brasília. “Ele foi trabalhar no Raffa’s, e eu fui ser cabeleireiro”, diz, referindo-se ao ofício aprendido ainda em Visconde do Rio Branco. “Tenho muitas boas recordações. Fui o cabeleireiro mais famoso daquela época”, lembra Chiquinho, como ficou conhecido. Instalado na Avenida dos Andradas, o salão mudou diversas vezes de endereço até chegar ao Alto dos Passos, onde cerrou as portas há 13 anos. “Fazia de tudo: cortava, pintava, fazia maquiagem”, recorda-se ele, que, diabético, chegou a fumar três maços de cigarro. Acendia um no outro. Até que sofreu um violento acidente vascular cerebral (AVC), que o deixou com o lado direito do corpo bastante fragilizado. Aposentou-se das tesouras e manteve-se firme. Mais velho de seis irmãos, dois já falecidos, Chiquinho resistiu ao conservadorismo da casa e da rua. “Era tudo escondido. Mas, quando era estudante, tive um caso e foi um escândalo. Meu pai me mandou para o Rio de Janeiro”, conta ele, que por um tempo viveu com os tios, até retornar a sua cidade, concluindo o curso de normalista, ofício que exerceu por apenas dois anos. “Eu tinha mais grana como cabeleireiro, então larguei as salas de aula”, pontua. “Naquele tempo, era muito difícil ser gay. Aqui eu emplaquei. Minha família ficou lá, e eu vim. Fiz tudo o que queria fazer.”
Debret
Mademoiselle Debret de Le Blanc nasceu em Juiz de Fora, no apartamento em que vivia Chiquinho Mota, seu intérprete. Inspirada em Maria Augusta Thurmann Nielsen, fundadora da Socila, que preparava as misses brasileiras, a personagem de Chiquinho representava o luxo e a elegância da alta costura. Executadas por nomes como o de Geraldo Sobreira, figurinista de Emilinha Borba e outras personalidades nacionais e internacionais, as vestes de Debret exaltava o recato sem deixar de lado o brilho das pedrarias. Algumas das peças compõem a exposição “No armário de Mademoiselle Debret Le Blanc”, que o pesquisador e curador Luiz Fernando Ribeiro inaugura no próximo dia 9 na galeria do Hotel Ritz. “Como Debret Le Blanc fui a muitos lugares, fazia dublagens”, lembra-se ele, que embebido da personagem criou um evento que começou em sua casa. Chiquinho e os amigos se travestiam e desfilavam pelos cômodos. Não havia concurso. Era uma festa, que cresceu, ganhou nome e profissionalizou-se em 1976. Como produtor, ele não largava a tesoura e o secador. Enquanto trabalhava, conversava com as representantes de todos os estados. Em plena ditadura militar, também precisava ficar atentos ao risco que corriam. “Era tudo por debaixo dos panos. Iam o prefeito, a primeira-dama, mas porque era como uma escola de samba. Hoje é o Miss Brasil Gay”, orgulha-se Chiquinho, que por muitos anos desfilou, vestido tal como uma mulher, no carnaval da Juventude Imperial. E uma vizinha mostrou para a mãe. O pai também viu, de esguelha. “Mas nunca tocaram nesse assunto comigo.”
Beth
Beth Vasconcelos também nasceu em Juiz de Fora. Dona de cabelos cacheados e vestes diminutas e brilhantes, a personagem surgiu para a noite. “Eu era a Beth Vasconcelos. Vestia saia curta e ia para a Factory (antiga boate localizada onde hoje é o Santa Cruz Shopping). E as clientes iam comigo”, conta Chiquinho. Como era vista? “Eu não perguntava”, ri. Fazia sucesso? “Muito”, responde ele, olhando a fotografia tirada na década de 1980. “Quando era jovem, tinha cabelo. Fui perdendo e hoje sou careca. Estou de boné porque estou numa entrevista. No dia a dia não uso. Sou essa figura que você vê”, diz ele, sentado no sofá da casa onde mora há 32 anos no Bairro Grama. Desde que adoentou-se, as irmãs Fernanda e Maria Alice dividem o lar e a rotina. Chiquinho não se casou, mas namorou muito, conta. Enquanto em Visconde do Rio Branco ele e os amigos eram apontados na rua por conta de suas orientações sexuais, em Juiz de Fora aprendeu a ser combativo. Exigia respeito. E aproveitava a fama que o permitiu ter independência e conhecer lugares como Portugal e a Paris de sua Debret Le Blanc. “Com a minha profissão, eu fazia sucesso. Atendia a alta sociedade. Minhas amigas foram maravilhosas. Minhas clientes eram ótimas”, lembra. E hoje, do que sente saudades? “Das minhas clientes, de pentear cabelos, maquiar. Vivo das lembranças.” Que são ótimas, não é mesmo?! “Isso. Vivo bem.”