Era do tamanho das pernas que pareciam formar um labirinto. Perdia-se no meio de tanta gente com sacolas e carrinhos. Corria entre barracas, entre laranjas, maçãs, couves e alfaces. Brincava com outras crianças, inventava jogos, ria e chorava. O nariz escorria, e o menino limpava na roupa. Sem frescuras, recorda-se Air Pires de Oliveira sobre o cenário colorido das feiras onde ergueu a própria vida. Debruçado sobre sua barraca, momentos antes da abertura da Feira Noturna, na Praça Antônio Carlos, o homem de 44 anos conta sobre uma vivência forjada nas noites mal dormidas e na efemeridade e fragilidade do que a terra dá.
“Pego em São Mateus às 4h. Trabalho até às 13h, depois venho para a Praça Antônio Carlos. Almoço no Mercado Municipal e acabo de arrumar para a noite. Fico 20 horas direto trabalhando. Chego em casa quase meia-noite. Descanso mais quatro horas e às 5h já estou no Manoel Honório. Aí descanso quando acaba lá. Durmo até 21h, janto, volto a dormir e acordo cedo na sexta-feira, quando vou para o Bairro de Lourdes. No sábado, meu filho vai para o Jardim Esperança, e eu vou para Santa Luzia. No domingo, nos separamos de novo, e às 3h estamos na Avenida Brasil. Eu fico mais embaixo, e ele, mais em cima”, conta o homem, que, como o filho, herdou o ofício em casa.
Descanso, para Air, é segunda e terça. “Centralizo tudo na segunda e terça. Serviço de banco, manutenção dos carros, das lonas, das balanças, tudo isso faço no início da semana. Até almoçar fora com a esposa deixo para segunda”, ri. Nos outros dias, ele compra mercadorias no local Ceasa ou no paulista Ceagesp. Manga e ponkan ele traz da roça. Num equilíbrio preciso, ele acompanha o tempo das frutas. Enquanto faz a feira de quarta, por exemplo, preserva no caminhão o que só amadurece no dia seguinte. “É preciso ter a feira boa, a ruim, a mais ou menos”, filosofa o homem enquanto divide em quatro uma melancia. “Até quando vou aguentar essa vida? Não sei, mas sei que essa vida tem um custo”, afirma Air ou Raí, como é mais conhecido. “Na feira, só sou conhecido como Raí. Em 1994, tinha um jogador de futebol, o Raí, que se parecia muito comigo. Eu trabalhava na Bruna (indústria têxtil), e todo mundo me chamava de Raí. O apelido pegou e continuou na feira.”
As sementes
No terreno onde morava, Raí via o pai colher o que alimentava tantas e tantas pessoas. Nascido na zona rural de Ubá, ele mudou-se para Juiz de Fora aos 5 anos, ao lado dos pais e dos oito irmãos. Aos 8, acompanhava seu José Pires Cancela nas feiras. Por isso, concluiu apenas o ensino fundamental. Aos 10, já levava a sério o negócio familiar. “Meu pai começou a fazer feira em 1968. Esse ano, fiz umas camisas personalizadas e anunciamos no som da feira. Na época, era na Rua José Calil Ahouagi. Ele vinha da roça e montava a barraca. Ele fazia uma coisa que hoje não dá. É praticamente impossível produzir e comercializar hoje. Não dá para deixar a roça sozinha, e mão de obra para comercializar ou plantar está difícil. Cada um tem que fazer seu papel. Meu pai produzia e trazia para Juiz de Fora quiabo, jiló, galinha. Tenho fotos antigas dele, franzino, vendendo isso com a minha mãe. Com o tempo, ele veio para a cidade e mudou de ramo, passando a vender frutas. Ele não diversificava muito, era mais laranja e banana. Quando ele ficou doente e eu assumi, decidi vender tudo quanto é fruta”, pontua Raí, que diante de uma crise em 1988, empregou-se por dois anos como cobrador de ônibus. Acabou voltando. Seu José, que tinha também uma barraca de frutas ao lado do Hiper Bretas, reduziu o ritmo quando inaugurou a Feira Noturna. “Ele ficou para me ajudar”, conta o filho, com os olhos marejados. “Dia 24 de junho foi a última feira que ele fez comigo. Era dia de jogo do Brasil (na Copa). A feira foi fraca, e ele ainda criticou muito”, lembra. Dois dias depois daquela feira, seu José passou mal e ao chegar na Regional Leste foi identificado um infarto. Transferido para a Santa Casa, fez angioplastia, “ficou novo”, mas, ainda no hospital, foi diagnosticado com uma disfunção renal grave. Passados 32 dias internado, partiu. “A avó dele viveu 106 anos, e a mãe tinha falecido há três meses, com 98 anos. Tínhamos a esperança de que ele vivesse muito, ele era muito forte. Mas o pai dele viveu só até os 63”, lamenta Raí, limpando as lágrimas que escorrem pelo seu rosto. Desde pequeno, Pablo acompanha o pai. O filho mais velho de Raí, aos 23 anos, representa a terceira geração de feirantes da família. Divide com o pai o trabalho e na parte da noite faz o curso de direito. Casado – a esposa trabalhava com Raí desde os 16 anos -, o jovem escreve para si outra narrativa. Diferente da rotina exaustiva do pai. “O que mais me preocupa hoje são as noites de sono perdidas. Durmo em média quatro horas por dia. E isso não tem volta”, lamenta Raí, por 19 anos casado com a mãe de seus filhos Pablo e Caio. “O trabalho não é tudo, às vezes é preciso se dedicar mais à família”, diz o homem, que aprendeu a lição justamente quando precisou, por dois anos, lutar para salvar a relação. Acabou separando-se, há três anos. Exatos sete dias depois de assinar a papelada do divórcio, conheceu a mulher com quem é hoje casado e com quem teve a pequena Helena, de 1 ano e 6 meses, que ainda não frequenta a feira.