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Luciano e Flávia Giron: amor ao próximo na prática

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Luciano e Flávia aceitam contribuições de alimentos e objetos de higiene pessoal, além dos presentes que reúnem para a ceia de Natal (Foto: Marcelo Ribeiro)
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Esse ano não tem ceia na casa de Luciano, Flávia, Laís e Larissa. Ano passado, também não teve. Nem em 2016, quando pela primeira vez o casal e as duas filhas se juntaram aos ocupantes das quatro grandes mesas montadas na Praça Antônio Carlos. Ceiaram com pessoas que hoje já se acostumaram a abraçar. Aos 48 anos, Luciano Giron Rosa cita o caso de uma pessoa há 15 dias sem tomar banho. E um homem, angustiado em seu primeiro dia na rua. Ainda, gente com mais de 20 anos dormindo em calçadas. Ou como o jovem casal com que Luciano se emocionou na última terça-feira: ela desesperada e com tendências suicidas, ele desesperançoso e agoniado, vieram de São Paulo e sem motivos aportaram sob as marquises de Juiz de Fora. Gente para as quais Luciano e a esposa, Flávia Silveira Giron, de 43 anos, voltam seus olhos desde a ceia de dois anos atrás. “Quando saímos do Natal na praça, chegamos à igreja (Batista no Granbery) e arrumamos tudo, com toda a equipe trabalhando, tivemos a sensação de que vivemos o melhor Natal da vida. Não ganhamos presentes, não fizemos ceia em família e foi o melhor que tivemos”, recorda-se o homem. “Quando acabou aquilo, percebemos que não dava só para fazer uma ceia, que qualquer um pode fazer. É fácil e tem muita gente boa que quer ajudar”, acrescenta a mulher.

“Naquele primeiro Natal, tivemos a noção de levar algo diferente para o pessoal que está na rua. Tínhamos a casa ao lado da igreja, que estava parada e sugerimos oferecer um banho, um lanche e uma conversa a essas pessoas”, conta ele, que, entusiasmado, fez o convite a todos que encontrava nas ruas. “Abrimos a casa na primeira terça-feira de 2017. No primeiro dia, não veio ninguém. Fiquei abrindo a casa toda terça-feira às 18h e fechando às 21h30. Montava mesa de lanche e não vinha ninguém. Fiquei três meses vivendo isso, até que resolvemos fazer um cartão e distribuímos para todo mundo. Pouco a pouco eles foram chegando”, lembra Luciano. Os primeiros a chegar foram Matheus, ainda hoje atendido, e Rodolfo, que se mudou de Juiz de Fora. Despretensioso, o projeto ganhou o nome de Recomeçar, foi acolhido pela comunidade do templo e hoje atende cerca de 70 pessoas, no endereço da Rua Dr. Antônio Carlos. Há poucos meses, a casa vizinha, onde tudo começou, foi derrubada para a construção de novas salas e da garagem da igreja. O projeto, então, passou a funcionar no mesmo prédio onde ocorrem os cultos.

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Flávia abre o lugar às 17h30 de todas as terças-feiras. Após uma breve recepção, todos tomam banho, trocam de roupa, assistem o culto e jantam. Ao longo de todo o período, conversam e se abraçam. Quando necessário, o casal busca encaminhamento de algum assistido para clínicas de reabilitação. Também orientam sobre emprego e oferecem cestas básicas. “O grande mantenedor do trabalho é a própria igreja. Hoje, por exemplo, sustentamos 14 famílias, de rua ou de baixa renda. Uma família da igreja cuida de cada uma, enviando uma cesta mensal por seis meses. Queremos fazer ainda mais, talvez trabalhos manuais e profissionalizantes”, comenta ela, entre a ansiedade de expandir o alcance de seu gesto e a certeza de que a amplitude atual já se mostra potente e bastante transformadora.

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“Minha preocupação é que se não agirmos com certa urgência, perdemos, mas também precisamos ter prudência nesse processo. O nosso assistido precisa passar por uma triagem, por um amadurecimento do desejo de mudança”, comenta Flávia, recordando-se de um rapaz que atenderam bem no início do projeto. Jovem, ele logo foi encaminhado para uma clínica de reabilitação, mas não permaneceu e, na semana seguinte de seu retorno, foi assassinado. “Já levamos gente para Manhuaçu, duas clínicas em Juiz de Fora. Um deles, encaminhamos para a clínica e hoje é monitor, mudou completamente”, acrescenta a mulher, para logo citar seu livro preferido: “A Bíblia fala que vale mais uma alma do que o mundo inteiro. Pensamos muito isso. Se o Jeferson, que é uma pessoa em quem vemos tantas mudanças aqui, se firmar, tudo já valeu a pena.” Luciano recorda-se de que foi Jeferson o primeiro a receber seu convite para a ceia de 2016. Recuperado, o homem foi encaminhado a uma clínica, regressou e hoje já tem a própria casa.

Sobre abrir portas

Foto: Marcelo Ribeiro

“Todo mundo aqui tem comida na rua, não é mesmo?!”, pergunta Flávia com sua voz segura, aos que esperam para o início dos trabalhos na última terça. Todos confirmam. Falta, contudo, assegura Flávia, o afeto. “Na rua, toda hora tem comida. Ninguém passa fome em Juiz de Fora. Então, percebemos que muitos vem aqui por causa da palavra, do abraço, pelo reconhecimento como ser humano. Aqui nós valorizamos as pessoas, chamamos pelo nome, damos dignidade, dizendo o quanto elas são importantes”, afirma Luciano. “É preciso esquecer a carcaça e valorizar o ser humano. Digo sempre para eles que não pergunto sobre o que ficou para trás, minha expectativa é com o que vem pela frente para eles”, completa, dizendo direcionar a mensagem dos cultos para que consigam, de fato, a transformação na qual acreditam. “Passamos vídeos de pessoas que estiveram na mesma situação, por exemplo. A Junta Batista tem um trabalho chamado ‘Cristolândia’, que atua dentro das cracolândias nos grandes centros, e é nosso modelo. Eles têm muita gente recuperada. Essa semana exibimos um vídeo de um rapaz que passou por 22 clínicas, se recuperou, ficou na Cristolândia, conheceu uma moça e um ano depois se casaram. Tentamos, também, trazer pessoas para falar para eles sobre o que passaram”, diz Luciano, que acredita ter recebido um chamado de Deus, inspirado num projeto semelhante de outra igreja. “Queremos dizer que, se algumas pessoas puderam mudar de vida, todos podem se transformar. Se nós pudermos ser essa ponte para que eles alcancem a transformação, que sejamos”, completa Flávia, e prossegue: “É preciso olhar para o outro com olhar de misericórdia. Às vezes vemos alguém na rua e pensamos: Sem vergonha! Está usando droga! Não vou dar dinheiro para não comprar drogas! Só que não consideramos que eles enfrentam uma batalha todos os dias. Ninguém está na rua porque quer. Nosso sonho é ter oficinas, atendendo mais dias. O Luciano costuma dizer que o crack não fecha, o bar não fecha, porque nós iremos fechar? Temos uma turma muito boa que nos ajuda, intercalando umas 20 pessoas, mas ainda não conseguimos abrir as portas todos os dias.”

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Sobre criar pontes

Foto: Marcelo Ribeiro

Casados há 20 anos, Luciano e Flávia se conheceram no trabalho. Impressor gráfico, ele rodava as artes que ela, designer, fazia. Ele, nascido e criado no Bairro Dom Bosco, era um católico infrequente. “Minha mãe era cantineira, e meu pai, zelador de escola. Vim de uma família muito humilde”, lembra. Ela, por sua vez, nascida em Ipatinga, cresceu numa casa onde a religião era imperativo. “Vim de uma família de missionários e pastores. Meus pais já moraram aqui. Hoje vivem no Paraná. Meu irmão é pastor lá, e minha irmã, casada com um pastor. Meus tios e primos são pastores e líderes nas igrejas”, conta ela, que pela primeira vez compartilha de uma mesma atividade com o marido. “Sempre trabalhei muito, e ele também, em nossa vida secular, cotidiana. Eu sempre estive muito envolvida com as atividades da igreja, mas nunca tínhamos feito nada juntos, apesar de eu sempre saber que posso contar com ele, que sempre foi meu braço direito. Entrei no Recomeçar para ajudá-lo, porque é ele o responsável. Minhas filhas também vêm. Tanto a pequena (Laís, 9 anos), quanto a maior (Larissa, 18), as duas trabalham e ajudam. É muito bom ver as minhas filhas pegando um copo de água para quem está com sede, carregando comida, ajudando a picar as coisas. Entendi que precisávamos fazer algo juntos como família e estamos aprendendo”, diz, para logo apontar no marido o que o sorriso dele não dissimula: “Ele é o coração, se abre para as pessoas. O Luciano é um paizão e é ele quem me ensina. Todos têm muito carinho por ele. Ele sempre teve uma vida para o outro. Sempre foi uma pessoa correta, coerente e íntegro. Eu sou mais racional e fico com a parte estrutural do projeto.”

Sobre acreditar

A mesma sensação de que compartilha o senso comum, possuem Flávia e Luciano. “Nosso grupo aumentou bastante, principalmente com gente de fora. Temos gente de São Paulo, Sul de Minas, Congonhas, Bahia”, lamenta ele. Com isso, aumentaram também as atividades. E o Recomeçar celebra Dia das Mães, dos Pais, das Crianças e outras datas comemorativas. “Um dia fomos a um sítio em Igrejinha, levamos todo mundo e passamos o dia inteiro lá. Deixamos livres para jogarem futebol, e muitos quiseram dormir no gramado, porque não conseguem fazer isso com tranquilidade nas ruas. Levamos a palavra para eles, incentivando a mudança, eles tomaram banho e voltamos. Todos respeitaram muito”, recorda-se Luciano, com os olhos brilhando. “Falamos muito com eles que Deus quer mudar a vida deles, e eles precisam resolver as questões que têm com a sociedade. O que queremos é trabalhar de forma a despertar a transformação na vida deles. Criamos um coral, e esse ano eles vão cantar isso. Vamos jogar luzes para tudo quanto é lugar. Vamos fazer um Natal cheio de luzes, maravilhoso, para que eles sintam saudades e voltem na próxima terça-feira”, aguarda Flávia, referindo-se à ceia programada para o próximo dia 24, às 18h, no terreno ao lado do templo. “Diferentemente da primeira terça-feira do projeto, esperamos que a terça seguinte ao Natal fique ainda mais cheia”, diz, sorrindo, certa de que o caminho é longo. E o aprendizado é diário. Um dos frequentadores mais antigos do projeto, prestes a ser encaminhado para uma clínica, há duas semanas arrombou a igreja e roubou diversos objetos. “Corremos esse risco”, lamenta Luciano. Indignada, Flávia encontrou aprendizado na situação: “Ele disse que é isso mesmo. A gente deve servir sem ver o que o outro está fazendo. O próprio Jesus nos ensinou a ser assim quando fala que se alguém te der um tapa na face, você deve mostrar a outra. Esse amor que existe aqui eu tenho aprendido a praticar. É sobre não se importar com o que o outro faça e continuar fazendo a sua parte.”

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