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A voz da guajajara Alíria Wiuira, há seis anos morando em JF

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Alíria Wiuira é professora e pesquisadora das textualidades indígenas. “Não é um trabalho só de realização profissional, mas coletivo”, diz. (Foto: Fernando Priamo)

Um pequeno indígena pedia insistentemente para acompanhar a mãe na roça. Um dia, ela permite, mas alerta sobre os perigos do caminho. Andando, o menino vê um bacurau, pássaro de hábitos noturnos e cujas penas se assemelham com folhagens, permitindo-o exímias camuflagens. Espantado, ele voa baixo e curto. Entusiasmado, o garoto arma seu arco e dispara sua flecha em direção ao bacurau, que salta, fazendo com que o menino, novamente, tente acertá-lo. Assim, de flechada em flechada, o menino se distancia da mãe e ninguém mais ouve seus gritos, apenas os animais. Um pica-pau oferece ajuda, mas não consegue. Um jacaré, então, se dispõe a atravessá-lo no rio. Ao chegarem próximos à borda, o jacaré questiona se o menino falou mal dele e ameaça comê-lo. Ele, então, foge correndo. Desesperado ele encontra um socó, ave que se alimenta preferencialmente de peixes e que se oferece para engolir o menino. Ele aceita, dribla o jacaré e segue em busca da casa. Passa, assim, a comer os frutos da mata e a se comunicar com os bichos. Nesse caminho, e com o auxílio dos animais, o pequeno acaba por regressar à roça e ao colo da mãe. “Quando ele volta, já não é mais o mesmo, por conta das experiências que viveu. É uma metáfora dos rituais de passagem”, conta Alíria Wiuira Benícios de Carvalho, que ouvia a narrativa nos tempos de menina, pela voz da avó, numa aldeia no Maranhão, pertencente ao povo guajajara (também conhecido como tenetehara, gente de verdade na língua tupi). Aos 34 anos, também carrega a história em sua dissertação de mestrado, defendida na Faculdade de Letras da UFJF, onde hoje cursa o doutorado. Alíria, uma variação da flor lírio e que se compõe com Wiuira, cujo significado é vento brando, também é outra toda vez que retorna à aldeia que guarda suas raízes. “Mudou muito quando me tornei pesquisadora, porque meu olhar nunca mais foi o mesmo. Sempre que vou à aldeia, vejo-a como uma fonte de renovação”, diz ela, cujo sobrenome Benícios é herança do avô, um guajajara criado por uma família de brancos e que, ao retornar à aldeia, mais velho, inseriu o sobrenome de sua tribo. Carvalho é do pai, Alípio, descendente dos Timbira, do Piauí, estado que só recentemente reconheceu a identidade de povos remanescentes.

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Nascida no Maranhão e criada em  Teresina, Alíria nunca saiu de perto da aldeia onde vive sua família. (Foto: Fernando Priamo)

Amanajé

Marina vivia numa aldeia guajajara, no Maranhão e, ao contrair malária, na adolescência, foi a um posto de saúde. No lugar encontrou Alípio, técnico de enfermagem da Funai que aplicou nela a vacina. Casaram-se e tiveram cinco filhos. Quando a família se completou, arrumaram as malas e partiram para o Piauí. “Lá a gente cresceu e se formou. Minha mãe não deixava a gente perder o contato. Em todas as férias, a gente ia. E eu me declaro guajajara porque a minha convivência com eles foi maior do que com os Timbira”, pontua Alíria, que se graduou em letras, ainda que tenha pensado em física, curso ao qual se dedicou por três semestres. “Entrei no curso de letras para aprender gramática. Eu gostava daquelas regras. Mas não havia isso, e fui estudar física, porque sou apaixonada pela astronomia, principalmente a indígena. Senti o desejo de voltar e encontrei um professor que estudava literatura indígena. Até então eu achava que literatura indígena estava relacionada à literatura romântica, ‘Iracema’, ‘O guarani’. E não é nada disso. Hoje chamo de textualidades indígenas e não literatura, porque ela não está muito relacionada aos cânones”, explica a pesquisadora, que trabalhou em escolas estaduais e particulares até se mudar para Juiz de Fora, em 2013. “Estudo literatura indígena, narrativas, cantos, desde a graduação. Eles me veem como se eu fosse uma porta-voz. Tem hora que entro em crise, porque não é um trabalho só de realização profissional, mas coletivo. Estou fazendo por mim e também por eles. Falo por mim e pelos que estão aldeados e não têm a oportunidade de falar”, pontua ela, que na academia tornou-se uma amanajé, uma mensageira na língua tupi. “Retrato a parte cultural, mas também entro nos problemas das aldeias. Meu povo pede que eu fale do desmatamento, das doenças. A ideia errada do indígena machuca muito a gente.”

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“Retrato a parte cultural, mas também entro nos problemas das aldeias. Meu povo pede que eu fale do desmatamento, das doenças. A ideia errada do indígena machuca muito a gente”, afirma a porta-voz dos guajajaras. (Foto: Fernando Priamo)

Angatu

Alípio, o pai, desejava que os filhos estudassem. Uma irmã de Alíria tornou-se engenheira de alimentos e hoje leciona em um instituto federal, outro é jornalista e advogado, outra é coordenador de cultura e arte no Sesc, outra é professora de educação infantil. “Tenho primos que se formaram em odontologia e enfermagem e voltaram para a aldeia. Agora, tem outra geração chegando, recém-saída do ensino médio e morando na minha casa em Teresina, que serve como apoio”, conta ela, que neste setembro regressa para a aldeia Marajá para assistir a um ritual anual cheio de simbolismos que demarca a passagem das jovens indígenas à vida adulta. Sua aldeia de referência, relata, é pequena e pacífica, ainda que enfrente com alguma frequência o assédio dos fazendeiros. Casas de barro e palha estão espalhadas por uma área extensa e com um grande espaço de convivência ao centro. Seus habitantes alimentam-se do que plantam, mas frequentam a cidade e fazem compras, alguns com os parcos recursos do programa assistencial Bolsa Família. Têm energia elétrica, mas a internet não é tão comum. Atualmente, contabilizam-se menos de 30 mil guajajaras distribuídos em uma dezena de aldeias no Maranhão, segundo dados de 2014 da Secretaria de Saúde Indígena. “Tem aldeia que tem quatro ou cinco famílias e outras com mais de dez”, afirma Alíria, narrando a frequência com que ocorrem invasões de madeireiros, que ameaçam, inclusive, as entidades fiscalizadoras. Em algumas regiões, os próprios indígenas são preparados para conter o fogo, evento infelizmente comum na região. A resistência, carregam no corpo. São angatus, homens de alma boa na língua tupi. E é no corpo que Alíria sente suas conexões com a natureza. Quando chove, ela também chove. “Meu humor muda. Em dias de sol, animo a fazer um monte de coisas.”

Após concluir o doutorado, Alíria planeja se fixar na aldeia no Maranhão, lecionando em escola indígena. (Foto: Fernando Priamo)

Aupaba

Alíria é bolsista do doutorado em letras na UFJF e viaja o país dando palestras, oficinas e cursos. Atualmente, escreve a tese de doutorado, cujo prazo de entrega é 2021. Ano passado, ela conheceu Rafael. Em abril, eles começaram a namorar e, há algumas semanas noivaram, no Piauí, numa festa com motivos indígenas. Após o casamento, eles planejam morar numa aldeia, ou próximo a ela. Ele atuando com a medicina que já exerce, ela com a educação. Alíria quer regressar à sua aupaba, terra de origem segundo a língua tupi. “É um grande sonho meu. Vou me realizar quando voltar. E é um desejo de meu povo que eu também possa trabalhar numa escola indígena”, diz a mulher de longos cabelos negros cujo paladar é moldado pela culinária à base de tapioca e macaxeira (mandioca), além dos chás. Em nome do amanhã, Alíria escreve a própria narrativa. “É preciso respeitar o indígena como alguém que estava lá antes de tudo. É preciso entender e respeitar a ideia do indígena, o modo de ver o mundo dele. São povos que pertencem à terra e não a terra que pertence a eles. A terra é sagrada. Tem uma história ali. E ver a terra ser destruída é ver a história ser destruída e eles também”, comenta. “Existe políticas indigenistas, mas não são respeitadas porque não existe a consciência de que a posição do outro deve ser respeitada. Também precisamos entender o que é ser indígena hoje. Índio não é aquele povo que tem que viver só na mata e se sair deixa de ser índio”. Alíria, portanto, não se percebe menos indígena por não viver numa aldeia. “Não basta se declarar indígena. É sanguíneo, mas tem que ter o reconhecimento do grupo, tem que ter o sentimento de pertencer. Tenho um grupo de referência na aldeia, eles sabem que pertenço àquele grupo mesmo morando na cidade, não importa o que eu vista ou o que eu use. Mas, sinto falta de não estar no meio deles.”

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Alíria Wiuira: “Não basta se declarar indígena. É sanguíneo, mas tem que ter o reconhecimento do grupo, tem que ter o sentimento de pertencer. Tenho um grupo de referência na aldeia, eles sabem que pertenço àquele grupo mesmo morando na cidade.” (Foto: Fernando Priamo)
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