Passeando pela Netlix com meus filhos em busca do que assistir, lá estava em destaque “The Crown” que, para quem não sabe, é a história da família real daqui da Inglaterra, especialmente durante o reinado da rainha Elizabeth I, esta que ainda reina. Enquanto escolhemos o que assistir, minha filha comenta que quase não acredita que eu cheguei a conhecer a rainha. Dou um sorriso e, sinceramente, isso faz lá seus doze, treze anos, nem eu mesma consigo acreditar. Essa história começa com a minha falta de dinheiro. Nunca foi fácil vir para a Inglaterra e me manter aqui. Eu cheguei em 2001 já com um trabalho de “aupair” no bolso. “Aupair” é uma espécie de babá, mas de crianças mais velhas. Minha partida de Guarani para Londres não foi moleza. Não tínhamos dinheiro. Minha mãe chegou a entrar num consórcio e, milagrosamente, um dia antes de eu viajar, ela foi sorteada com um pequeno montante que daria hoje cerca de cinquenta libras. Pouco mesmo. Meu tio Alcyr, irmão da minha mãe, nos ajudou com toda uma burocracia necessária para provar minhas condições de permanência em terras estrangeiras. Minha tia Solange me deu uma mala verde tão linda e tão grande que me durou mais de década. Quando eu saí do Brasil imaginava poder, de imediato, fazer um mestrado. Mas a vida é cara, apesar de bela, e os estudos custam muito. Não foi difícil encontrar outro trabalho de babá – já contava com boa experiência e o choque cultural se abrandava – para uma família rica. Meu compromisso com eles era de segunda a quinta, e às sextas eu estava livre. Mas quando é preciso arcar com milhares de libras para um mestrado, ter um dia de folga não é uma opção. Fui então, recomendada pela família com a qual eu trabalhava e morava, para fazer o dia extra na casa de alguns amigos. Até aí, nada de mais. Aceitei a ideia, fui até a casa em questão e passei na entrevista. Eu nada sabia sobre aquela família, a não ser o fato de eles conhecerem os meus patrões. Com o passar do tempo, comecei a notar que as cartas endereçadas à mãe das crianças da sexta-feira vinham com o título de “lady”. Notei a coleção de chapéus. Notei a gaveta de joias sempre aberta, uma aflição. Mas eram relativas sutilezas, já que os aristocratas ingleses detestam vulgaridades. Você não vai encontrar TVs de última geração, carros novíssimos, roupas da moda. Achei melhor me inteirar e um dia, na casa da família com a qual eu morava, pedi que me explicassem quem era a família da sexta-feira. Meu queixo caiu. Não encontrei palavras. Passado um tempo, a mãe das crianças da sexta-feira, a partir de agora denominada “lady”, pede que eu os acompanhe à casa dos pais dela para o final de semana, trabalho extra, claro que eu aceito. O palácio da família do duque passou a ser meu endereço de fim de semana por muitos meses, algumas Páscoas, feriados, já que passei a trabalhar para a família de sexta todos os dias da semana, pois a outra família não precisava mais de mim. Fiquei amiga da lady que exigia ser chamada de tal, menos por mim. Eu a chamava pelo primeiro nome. Certa vez, o mordomo chamou minha atenção por eu me referir a ela com tanta informalidade. Ela o corrigiu. Trabalhei com eles por cerca de cinco anos e numa ocasião, no palácio de Chatsworth, notei uma certa agitação. Empregados, mordomo, secretários para lá e para cá. Fui chamada ao escritório da secretária do duque, pai da lady, minha patroa. A secretária me dizia que eu teria um lugar à mesa de jantar naquela noite porque as crianças, das quais eu tomava conta, e eram quatro, eram convidadas. Eu deveria permanecer calada, sorrir sempre que possível, mas não gargalhar. Deveria apenas falar se fosse perguntada. Que me vestisse de forma discreta e formal. Só isso me disseram. À noite, depois de eu dar banho em todas as quatro crianças, vesti-las e penteá-las, bateram nos nossos aposentos e que seguíssemos a secretária até a sala onde seria servido o jantar. Depois de recomendar às crianças que se comportassem exemplarmente, me lembro de sentir as pernas bambas. Sentada, segurando uma xícara e conversando com alguém que eu não reconhecia, a rainha. Ela, a Elizabeth, essa que ainda reina. Confesso meu pânico. O meu lugar e o das crianças eram o mais longe possível do dela, mas lá eu estava com a monarca. De repente, uma das crianças, a mais levada, um menino de seis anos, corre pela sala e fica parado ao lado dela. Ela sorri para ele, confirma o nome do menino e o mordomo, com seus olhos cortantes, pede que eu retire a criança de lá. Para isso, eu teria que atravessar a imensa sala de jantar e ir parar ao lado da rainha. Fui. Sei que não tinha permissão de olhar em seus olhos, mas não resisti. Notei ainda um fio de cabelo no seu queixo. Era tudo que eu precisava: um fio de cabelo no queixo da monarca britânica. Um suspiro meu de alívio e consegui até aproveitar o jantar. Nada é tão grande quanto parece e, com tanto trabalho, consegui pagar o meu mestrado e levar meus pais para passear na terra da rainha, essa que ainda reina.