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Desliga

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“Desliga”. Talvez seja a palavra mais gritada na minha casa. Desliga o celular, desliga o tablet, desliga a televisão. Desligo eu, desliga tu, desliguemos nós. E agora que nos desconectamos, o que vamos fazer? Não é raro que me peçam dicas sobre como fazer uma criança gostar de ler e largar o celular, o tablet. Eu não acho que seja eu a pessoa indicada a dar esse tipo de conselho porque eu mesma me desespero, vez ou outra, quando observo meus filhos e seus tempos perdidos, desperdiçados, se despedaçando em partículas de ar que lhes escapam para nunca mais. Jogos viciantes, mensagens de whatsapp que não dizem nada. Tantas vezes eu me desespero e me pergunto como arrancar aqueles olhinhos já cansados de tanto computador de dentro da tela brilhante?

Quando chegam da escola, comem qualquer coisa e, sorrateiramente, me enviam beijos, agem de forma esquisita, tornam-se extremamente cordiais e carinhosos e basta eu piscar os olhos, já estão lá ligando os botões daquele submundo que os seduz. Uma pequena distração minha e já era: dois zumbis em perfeito estado hipnótico. Aí, vem o grito: desliga. Eles me obedecem. Mas depois de desligarem, vão fazer o quê, me perguntam. Vão fazer nada, absolutamente nada. Mas fazer nada é grande demais. Fazer nada é um mundo vasto e sem esquinas. Fazer nada dá medo.

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Ainda trago comigo a voz da minha mãe que me respondia, enquanto fazia trabalho doméstico, para que eu me deitasse na cama e olhasse para o teto quando eu reclamava de monotonia – palavra que aprendi e gostava de dizer. Uma palavra linda que fazia parte do mesmo grupo das palavras finas, como eu as categorizava: enxaqueca, e não dor de cabeça. Apetite, e não fome. Exausta, e não cansada. Comecei a classificar as palavras em finas e grossas enquanto eu estava enfiada na monotonia, repousando, e não deitada, na cama e olhando o teto descascado que circundava o pequeno lustre em formato de compota para doces. Quando minha mãe me ordenava que eu fosse para a cama olhar o teto, a minha primeira sensação era de desespero. Mas a respiração se acalmava e os nervos também. Eu, então, começava a achar sentido naquele nada branco e amarelado das paredes. Via palavras, muitas, palavras finas e palavras grossas. Pensava em como eu detestava o meu próprio nome que, aos dezoito anos, seria substituído por Melina. Pensava na palavra faculdade que era tão madura, tão crescida. Pensava, principalmente, no que poderia existir além das bananeiras e mangueiras que cortavam meu horizonte. Pensava em casas da cidade nas quais eu nunca entrei. Pensava estar apaixonada e colava ao meu nome um sobrenome começado por S. O que realmente acontecia naquela cama enquanto eu olhava o nada era o que eu acabei me tornando. Traçadas no teto, palavras que eu colheria para usar mais tarde aqui, nos livros, durante a vida. Palavras que me silenciariam por tanto peso. Desde cedo eu sabia que era a minha mãe quem me fazia escrever. Ela mesma escrevia e com muito mais capricho que eu. Logo ela que nunca viu um livro meu publicado e logo ela que teria o maior orgulho de todos em ver lá o meu nome e o sobrenome do pai dela que eu trago comigo. Nas inúmeras vezes que eu olho para o meu teto agora, eu me lembro da mãe, uma espécie de fantasma que eu carrego comigo como companhia porque, como ela, eu também fiquei congelada no tempo para tanta gente que conheci. Olho para o teto e penso na oportunidade que ela me deu ao me dar nada para fazer porque antes de escrever este texto, eu olhei para uma tela em branco parecida com um teto e me pus a pensar nas palavras que comporiam a coluna de hoje.

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“Desliga” será sempre a palavra de ordem para os meus filhos. Além de ser uma prova de amor, nela cabe um mundo.

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