Minha filha nos contava sobre uma aula de educação física em que os professores selecionavam os melhores corredores para uma competição na escola. Ela se sentiu injustiçada porque competiu com crianças muito mais altas e que já participavam de torneio de atletismo. De fato, achei que ela ter sido selecionada para competir foi um critério estranho, considerando que há estrelas do atletismo no grupo que já conquistam até medalhas – minha filha não é uma delas.
Mas antes que se debruçasse em lástima, eu me lembrei de refrescar a memória dela quando, feliz por ter levado um troféu para a escola em ginástica, ela parecia ter se esquecido que, entre os adversários, alguns novatos sem experiência ficaram sem o destaque que ela teve por conta de anos de dedicação ao seu esporte favorito.
Parece justo colocarmos todos para competir, não é? Porém, o preparo de cada um pode ser muito diverso, o que torna a competição injusta por natureza. É algo tão claro que, confesso, sinto-me confusa quando esse conceito é questionado.
É claro que queremos todos um país e uma sociedade mais justos. Queremos que todos os brasileiros tenham acesso a atendimento médico, Educação de qualidade e segurança. São princípios que fundamentam a boa política social de uma nação. Aí, chegamos ao Enem. Minhas redes sociais noticiam várias histórias de jovens que estão estudando para o teste. Há reportagens que cobrem as dificuldades do ensino à distância dentro de apartamentos nos grandes centros, por exemplo. Numa casa em São Paulo composta por um casal e três crianças e com “apenas” três laptops, a família expressava a dificuldade em manter em dia os deveres escolares, as aulas via zoom, as conferências. Isso sem contar as reuniões e planilhas de trabalho dos pais, com empregos fixos, que precisariam do computador em tempo integral para bater metas. Realmente, imagina o caos! No dia seguinte, a história do rapaz do Mato Grosso estudando para o Enem no banco de uma praça em frente ao açougue, cujo dono fornece a ele o sinal de wifi. O celular comprado pelo menino foi conseguido através do trabalho de vender latinhas. Não, caro leitor, essa não é uma história bonita e de superação. É uma tragédia que é a cara do nosso país. Que diabos fazia o jovem vendendo lata enquanto outros concorrentes fazem cursinhos preparatórios e estudam inglês online dentro dos quartos com ar condicionado, estantes de livros que tantas vezes não leem, celulares de último modelo? Como é possível alguém achar que seja justa essa competição? É preciso ter uma cara de pau impressionante para acreditar em meritocracia, não acha?
Em caso de dúvida, vou ilustrar fazendo um convite a quem, por acaso, possa ver estes argumentos como parcela de uma agenda esquerdista gratuita da minha parte.
Convidamos dois jovens para apostarem uma corrida. Quem chegar na frente, ganha um estágio. As regras são simples e apenas duas:
Regra 1- na metade da corrida, o participante precisa parar e responder a duas perguntas em inglês. Coisa básica como um how are you, tá ok?
Regra 2- quem cruzar a linha de chegada primeiro, ganha. Não poderia ser mais simples.
Para fazer da competição um jogo justo, os dois participantes terão a mesma idade, mesma altura e mesmo peso.
Podem, claro, calçar o tipo de sapato que quiserem. Mas, vejam que curioso. Um dos concorrentes tem um tênis de última geração, confortável e caro. O outro participante está descalço e tem bolhas nos pés machucados. Fora esse pequeno detalhe, são totalmente iguais e têm, claro, as mesmas chances.
Se você concorda que há justiça nessa corrida, você não está descalço.
Mas se ainda assim, alguém acreditar em meritocracia, que tal colocar na lista de Natal para ganhar um pouquinho do Papai Noel? Afinal, ele também existe.