Semana passada, conversava com meus filhos sobre alguns clássicos da literatura infantil. Chapeuzinho Vermelho era um deles. Eu que jamais questionei o perigo evidente envolvido na ideia de cruzar uma floresta sozinha, me vi testada pela minha filha. Ela queria saber a razão da mãe da Chapeuzinho insistir tanto sobre o risco de a menina cruzar um pedaço de mato sem a companhia de ninguém. Claro, subentende-se aí que a companhia de um homem fosse necessária para que a mocinha andasse em segurança. Mas como eu posso justificar isso para a minha filha que cresce exatamente com os mesmos direitos e deveres que tem o irmão dela? Como é possível explicar que o simples fato de um homem se posicionar ao lado de uma mulher enquanto ela cruza uma rua deserta é tido como suficiente para lhe garantir integridade física?
Outro dia eu fui fazer uma caminhada. Bem perto da minha casa tem uma floresta. Nesta época de primavera, campos de flores se abrem em clareiras por toda parte e eu planejava ir com meu celular registrar a estação em plena explosão de cores e perfumes. Caminhei até o início do atalho que me faria adentrar o cerne da floresta com árvores de copas fechadas, silêncios e esconderijos. Voltei para casa vencida e arrasada. Minha filha quis saber a razão da rapidez da volta. Expliquei a ela que eu voltei porque sou mulher. Depois de um tempo de reflexão, conversei com ela sobre o que eu havia dito. A minha raiva e frustração iniciais passaram a servir de diálogo sobre o que a minha filha, que um dia será mulher, pode esperar. Mas antes de ser mulher ela será uma pessoa adulta que será independente e dona do caminho dela. Ela terá esse direito básico de ir e vir sozinha, se assim quiser. Ou será que vamos ter que continuar a nos identificar com o toque de recolher que as crônicas londrinas de Virginia Woolf narram a partir da sua decepção ao ter que se limitar a explorar Londres através dos passos de um homem, impossibilitada de caminhar sozinha nas insalubres esquinas da capital? Quando penso nesse tipo de liberdade que desejo para a minha filha, me refiro ao tipo de liberdade que quero também para o meu filho. Naturalmente gostaria que ambos tivessem o bom senso ao julgarem a viabilidade de trânsito em horários e lugares. Mas também quero que minha filha entenda que o gênero não deve determinar a sensação de segurança e bem estar dela, e que se um homem passa por nós dentro do profundo da floresta fazendo uma caminhada e ouvindo música, ela também poderá fazê-lo se um dia quiser. Não será preciso dar meia volta para a casa como a mãe dela que teve medo de lobo mau e cresceu acreditando que caçador era herói. Quanto do machismo disfarçado de proteção nós continuamos a validar através da repetição de comportamentos e aceitação de normas e hábitos culturais que já não condizem com a clara, mas ainda em progresso, emancipação da mulher? Por quanta violência física e psicológica as mulheres precisam passar para que lutem pelo simples direito de serem livres como um homem? Eu gostaria muito de imaginar que fosse a minha geração a última a se submeter a tamanho machismo controlador e violento. Mas me preocupa profundamente o número de mulheres que ainda concorda que seja aceitável ver uma maioria esmagadora de homens na política decidirem leis sobre o seu próprio corpo, por exemplo.
Assusta-me pensar que há escolas e famílias que acreditam que meninas devem usar rosa e meninos devem brincar de carrinho. Escandaliza-me que tantas mulheres se acovardem diante do modelo misógino validado por representantes políticos que repetidas vezes subestima a nossa inteligência e viola nossos direitos e a nossa integridade tentando passar preconceito por piada.
Acordem, meninas! Vamos pegar para a gente o direito de seguir nosso caminho pela estrada afora sozinhas ou acompanhadas de caçadores, lobos ou vovozinha. Mas que a escolha seja nossa e não do narrador de um conto machista e profundamente equivocado.