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Você só tem mais trinta anos de vida

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Em um dos seus contos, Doris Lessing traz uma personagem que, depois de não se sentir bem, vai ao médico que lhe diz para não se preocupar, pois ainda tem alguns bons trinta anos de vida.
Naquele momento, parei a leitura, algo que faço quando encontro uma reflexão solta no meio do caminho. Se tudo der certo, a personagem ainda teria trinta anos de vida saudável antes de morrer. Uma rápida conta de matemática e lá estarei eu com setenta e cinco anos. Isso se tudo der certo, porque o mundo, o meu, pode acabar antes porque as tragédias existem e a morte é sempre uma inconveniência fora de hora. Naquele momento, pensei sobre o mistério que nos ajuda a acordar com otimismo todas as manhãs. Se soubéssemos a data da nossa morte, talvez não fosse possível vivermos com tanto bom humor. Trinta anos passam muito rapidamente. Sei disso porque já vivi quarenta e cinco. Contento-me sempre em, diariamente, me lembrar que, caso seja hoje o dia da minha morte, eu vivi uma vida plena, cheia de desejos satisfeitos, pouca culpa, algumas amizades profundas, amor, além de ter gostado de me fazer companhia na maioria das vezes que fiquei sozinha, por desejo ou por abandono.  Trinta anos são um pulo. Acho graça quando penso em alguma música ou filme do qual eu tenha gostado e quando vou dizer que é velho, que deve ter uns quinze anos, me surpreendo que já se passaram mais de trinta anos desde, por exemplo, o filme A Insustentável Leveza do Ser que eu vi quando adolescente escondido dos meus pais. Depois vi aos quarenta anos e notei a clareza daquela obra que, de fato, me tocou muito. Talvez porque, como no filme e no livro, as vidas dos protagonistas se rompem, sempre abruptamente ao feitio da morte, mas depois de passarem uma noite se divertindo bebendo e dançando numa taverna. É o que eu chamo de boa morte. Estavam felizes quando tudo foi para o espaço. Por isso, tantas vezes, fico estarrecida com o ódio que governa o nosso país. O que falta a essa gente é uma noite na taverna com amigos, bebidas, amores, arte, sexo, risos abertos. O que é mais importante que essa leveza toda? De que adiantam cara sisuda de repreensão, violência, ódio, agressão? A morte, afinal, pega o satisfeito e o alegre tão repentinamente quanto o opaco e o duro. Claro, os trinta anos do conto de Lessing, peguei como uma metáfora da incerteza. Não sabemos nem a quantidade e nem a qualidade dessa vida que nos resta. Mas, o que dá para fazer é alimentar a vida com cultura, conhecimento e arte. Tenho visto com enorme entusiasmo que, durante a quarentena, vários cursos vêm sido oferecidos. Mas, vamos com calma: não são cursos gratuitos. Já sabemos que escritores, professores, artistas precisam ganhar dinheiro, certo? É correto que se pague por conhecimento. (Ainda se discute isso?) Eu, por exemplo, vou oferecer um curso sobre Macbeth, de William Shakespeare. Mas quem faria um curso sobre Macbeth? Quem certamente jamais faz perguntas assim, por exemplo. Fazer cursos de arte, literatura e cultura não nos transforma em pessoas melhores, pois quando a morte chegar e vier nos buscar, levará indistintamente quem se ocupou de arte e quem fez campanha contra projetos culturais. A diferença será que, na hora de nos levar embora, um irá em paz sabendo que alimentou a alma com belezas. O outro será a alma penada que desejará ter tido tempo para ser uma pessoa melhor. Comecei quarta-feira um curso de roteiro. Vai que meus trinta anos que sobram acabem antes do previsto. Vou me alimentar.

P.S. Quem quiser fazer as duas aulas sobre Macbeth, basta se inscrever no site capitolinabooks.com/cursos

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