Sentada na estrada de chão que nos levará a São Joaquim (RJ), assisto o dia amanhecer e agradeço por tudo que meus olhos veem e pelo o que meu coração sente. A natureza perfeita é um estímulo a mais para vencer o cansaço e seguir adiante. A temperatura no alto está ainda mais gelada, mas o corpo vai esquentando com esforço provocado pela subida íngreme da serra.
A saída de Santa Isabel (RJ) foi pelo asfalto, por oito quilômetros, e depois mais 14 de estrada de chão. É o trecho mais curto da Caminhada da Fé, porém, o mais puxado por causa dos morros.
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Um a um, os romeiros vão passando pelo carro de apoio para hidratação. Ali, observo a expressão dos devotos e admiro a força de vontade de cada um. Todos, sem exceção, dispostos a completar o quinto dia da romaria, apesar do cansaço provocado pelo esforço físico somado às poucas horas de sono.
Decidida a me poupar fisicamente para registrar as histórias dos romeiros, entro no carro de apoio no morro final. Para esta segunda metade do trecho, traço como meta caminhar até 20 quilômetros por dia, distância que consigo andar com prazer, sem prejudicar o meu corpo. Assim, consigo curtir as paisagens do caminho e desfrutar da companhia dos companheiros de jornada.
Carlos Ney é meu alvo. Andar ao lado dele é diversão na certa. Nascido na roça de Astolfo Dutra, o professor de geografia de 40 anos tem uma energia que parece não ter fim. Interage com todo mundo, faz piada com tudo e não deixa ninguém desanimar. Ele tem sempre uma receita caseira para resolver qualquer intercorrência.
Ney representa bem o espírito da Caminhada da Fé: generosidade. Aqui, todos somos uns pelos outros. Observo isso não só no trajeto a pé, mas em todos os momentos. Quem chega primeiro ajuda a descarregar o caminhão e a preparar os alojamentos. Quem sofreu com as dores ontem, hoje ajuda quem está dolorido.
Os mais habilidosos viram os “doutores” especialistas em furar e drenar as bolhas nos pés. A assistência acontece até mesmo na estrada. Basta alguém queixar alguma dor, que logo surgem pomadas e curativos que ajudam a aliviar o sofrimento.
Talvez a palavra sofrimento não caiba nesta situação. Acredito que um romeiro com pés cheios de bolhas possa sentir um desconforto, mas não um sofrimento. Mas para entender como isso funciona é preciso estar aqui. É algo que não tem explicação. O corpo dói, mas a alma quer mais, quer ir além, quer se superar.
São dezenas de homens e mulheres com mais de 60, 70 anos, com uma energia que me deixa encabulada. Eles são minha meta de vida, penso.
A professora aposentada Anamaria Rodrigues Lopes, 70 anos, é um exemplo. Ainda na madrugada, quando todos tomam café, ela já está recolhendo o lixo e limpando a escola onde nos hospedamos. Na saída, é ela quem puxa o terço. Na estrada, está sempre no pelotão da frente. Gosta de chegar cedo à próxima cidade para deixar tudo pronto para quando todos chegarem.
Carrega as malas, arruma os colchonetes para as companheiras que chegam cansadas. “Mas e a senhora, não fica cansada?”, pergunto. “Não. Já estou acostumada”, me responde, ao mesmo tempo em que me pergunta se preciso de algo. “Gosto de ajudar, de fazer algo que deixa o outro feliz.”
Você deixa, Anamaria. Pode ter certeza. Seu carinho renova o corpo cansado.
E assim seguimos caminhando, com uma felicidade que cansaço nenhum abala. Felicidade que o médico Flávio Amaral Junior teve ao comemorar seu aniversário de 48 anos neste domingo. O parabéns foi cantado no alto da serra, em plena caminhada, pelos peregrinos que seguiam com ele. Uma comemoração que, acredito eu, Flávio jamais vai esquecer.
Parabéns, doutor! Pelo aniversário e pelo caminho que decidiu seguir .
Nesta segunda, partimos para Vargem Grande, distrito de Resende (RJ). Mais 30 quilômetros para a conta.