Oi, gente.
Minha vida como leitor de quadrinhos tem algumas lacunas imperdoáveis, e uma delas era ter chegado aos 47 anos sem ter lido uma página sequer de “Juiz Dredd”, um dos clássicos da nona arte britânica oferecidos pela editora 2000AD. Só conhecia as versões do personagem para o cinema: a primeira, pavorosa, estrelada por Sylvester Stallone, e a ótima, espetacular e maravilhosa adaptação com o Karl Urban (tem no Prime Video, assista).
Pois agora posso dizer que essa vergonha quadrinísitca não passo mais, pois terminamos a leitura de “Juiz Dredd: Origens” e “Juiz Dredd: América”, que saíram por aqui pela Mythos. E comecei bem, aleluia.
“Origens” conta com roteiro e arte de seus criadores, John Wagner e Carlos Ezquerra, com Kev Walker comandando os desenhos na primeira parte – e ainda tem capa do mestre Brian Bolland. Para os neófitos, acredito que seja a melhor forma de ser apresentado ao implacável juiz dos pós-apocalípticos Estados Unidos, pois a história publicada entre 2006 e 2007 serviu para celebrar os 30 anos de Dredd, então nada melhor que mandar ver numa HQ de origem.
A história começa com Dredd e os demais juízes lidando com o que parece ser um crime menor, até serem informados sobre a entrega de um pacote indicando que um grupo terrorista sequestrou Eustace Fargo, criador do Sistema Judicial que os Estados Unidos passaram a ter no século XXI, e do qual Joe Dredd é um clone.
Por isso, Dredd e outros juízes terão que ir até a Terra Maldita a fim de pagar o resgate, e entre uma ameaça e outra o protagonista conta para seus colegas – e o leitor – como surgiu o atual sistema judicial, em que os Juízes-Chefes atuam como policiais, juízes, júri e executores das penas. Vários flashbacks mostram a agitação nos Estados Unidos, Dredd e seu irmão-clone Rico no início de seu treinamento, a suposta morte de Eustace Fargo, a ameaça provocada pela eleição do último presidente norte-americano e a guerra nuclear que devastou o planeta, dando origem a Mega-City 1 e outras megalópoles nos antigos Estados Unidos.
Com o personagem devidamente apresentado, aproveitamos e lemos também “América”, tão sensacional quanto “Origens”. Os três arcos (“América”, “O desvanecer da luz” e “Cadete”) foram publicados na Inglaterra em 1990, 1996 e 2006, respectivamente. John Wagner segue como roteirista, mas desta vez as ilustrações são do ótimo Colin MacNeil, que desenhou cada história num estilo diferente – provavelmente devido à passagem de tempo entre um trabalho e outro.
O protagonista, desta vez, não é o juizão carrancudo, e sim os cidadãos americanos que vivem sob um regime que abriu mão de dois dos três ideais que inspiraram o movimento de independência dos Estados Unidos: a liberdade e a busca pela felicidade. Só restou o fato de estarem vivos. Afinal, nas palavras do Juiz Dredd logo nas primeiras páginas, “A Justiça tem um preço. O preço é a liberdade”. Discordamos, mas por sorte (ainda) não vivemos essa distopia.
América Jara e Bennett Beeny são amigos desde a infância, sendo que o rapaz tenta esconder seu amor platônico pela moça. Com o tempo, suas vidas tomam rumos diferentes, e, quando se reencontram, ele é um cantor de sucesso e ela passou a integrar um grupo terrorista, o Guerra Total, que tenta derrubar o atual sistema controlado com mão de ferro pelo Departamento de Justiça e seus Juízes.
Um dos pontos mais legais da história é observar o ponto de vista dos protagonistas. Para Bennett, se o sistema funciona e ele pode viver sua vida em paz, perder quase todas as liberdades individuais não é o pior dos mundos. América, por outro lado, não aceita viver em um país cujas leis são mais opressivas do que justas, com as pessoas vivendo com medo daqueles que prendem, julgam e executam – os Juízes são os donos do poder e acreditam que estão certos, logo não têm interesse em mudar o sistema, que acreditam ser o ideal porque cortam na própria carne quando preciso, no caso de algum Juiz sair da linha.
Como toda boa história atemporal em seus temas, “América” provoca a reflexão sobre o nosso mundo real. Até que ponto estamos dispostos a abrir mão da liberdade em nome da ordem e de um regime em que ninguém, teoricamente, está acima da lei? Até que ponto devemos aceitar passivamente o que decidem os que estão no poder? Qual limite eles devem ter? É certo abrir mão do nosso poder de escolha e deixar tudo nas mãos de um pequeno grupo? E se eles se colocarem acima do bem e do mal, teremos forças para reagir e impedir os abusos e o despotismo? O quão próximo do fascismo está um mundo como o que lemos nas histórias do Juiz Dredd? E o quanto o nosso mundo, o nosso país, está nesse mesmo caminho?
São perguntas que surgem com a leitura de “América”, e para quase todas não temos respostas; mas é sempre bom refletir – pelo menos, enquanto isso ainda não for proibido.
Vida longa e próspera. E obrigado pelos peixes.