Oi, gente.
Jeff Lemire é um dos grandes nomes dos quadrinhos do século XXI. O roteirista e ilustrador canadense parece trabalhar como se não houvesse amanhã, tendo atuado simultaneamente em vários títulos da Marvel e DC Comics, mas é pelos seus trabalhos autorais que ele tem sido mais celebrado. “O soldador subaquático”, “Black Hammer” (que comentamos em duas ocasiões nesta coluna), “Gideon Falls”, “Royal Familiy”, “Descender”, “Condado de Essex”, “O ninguém” e “Family Tree”, entre tantas outras, há mais de uma década têm sido publicados por editoras como a Dark Horse e Image Comics, assim como pela Vertigo – finado selo clássico da DC Comics, que agora virou DC Black Label.
Pois na lista de “entre tantas outras” está nada menos que uma de suas mais emblemáticas criações: “Sweet Tooth”, que teve 40 edições publicadas pela Vertigo entre novembro de 2009 e fevereiro de 2013. O título acabou de ganhar adaptação para a TV via Netflix – e que senhora adaptação, ah migas e ah migos. Se “O legado de Júpiter” foi uma decepção recente, desta vez o serviço de streaming acertou na mosca como já havia feito em “The Umbrella Academy”.
A série de TV mantém os elementos principais dos quadrinhos. Um vírus devastador, conhecido como “O Flagelo”, matou bilhões e praticamente extinguiu a humanidade, que viu sua sociedade colapsar, e aqueles que conseguiram sobreviver se reuniram em pequenas comunidades ou milícias, pequenos bandos criminosos ou resolveram se virar sozinhos. Ao mesmo tempo, todas as crianças que nasceram eram híbridas de seres humanos com animais – e imunes ao vírus, o que fez com que muitos acreditassem que elas eram a causa da pandemia mortal ou a chave para encontrar uma cura.
O protagonista da história é Gus (Christian Convery), que passou os dez anos de sua vida escondido com o pai (Will Forte) na floresta. Uma série de eventos faz com que ele tenha que deixar seu lar e o guri acaba sendo salvo pelo misterioso Jepperd (Nonso Anozie), a quem ele chama de Grandão, que é convencido – a contragosto, no início – a levar o menino até o Colorado, onde estaria sua mãe. O caminho, porém, está cheio de ameaças, como a milícia dos Últimos Homens comandada pelo cruel General Abbott (Neil Sandilands).
Adaptar uma obra distópica como “Sweet Tooth” em plena pandemia foi uma aposta arriscada da Netflix por vários motivos. A plataforma de streaming poderia ter sido tachada de oportunista por ter feito uma adaptação apelativa ou carregada nas tintas do violência e gente morta e desgraça por todos os lados, mas os produtores da série preferiram seguir (ainda bem) por outro caminho.
Para começar, a HQ de Jeff Lemire é muito mais sombria, violenta, aterrorizante e desiludida que a sua versão televisiva. A produção para o streaming tem seus momentos violentos, sombrios, dramáticos e pós-apocalípticos, mas é muito mais otimista e colorida que os quadrinhos, em que o traço de Jeff Lemire ajuda a criar uma sensação de destruição, sujeira, podridão e falta de esperança que perpassa toda a história. Nos quadrinhos, Gus e Jepperd sofrem feito o cão da depressão a cada página, sempre encontrando desgraça em cada lugar por onde passam.
A série também tem como destaque positivo o roteiro, que passa toda a primeira temporada com pelo menos três tramas paralelas que acabam se encontrando no último capítulo, que é o mais dramático dos oito, porém termina com aquela luzinha de esperança para quem se chocou com tanta tragédia em tão pouco tempo. Os roteiristas também acertaram ao mudar a origem de alguns personagens, criar outros para a série e ainda dar mais espaço para aqueles que nos quadrinhos não tinham uma origem bem definida.
Mas sejamos sinceros: de nada adiantaria “Sweet Tooth” ter todas essas qualidades se a série não tivesse um elenco tão bom, principalmente quando pensamos nos protagonistas. É difícil imaginar em alguém mais carismático que Christian Convery para interpretar o protagonista, que ao contrário dos quadrinhos – onde é uma criança desconfiada, sempre com medo – é mostrado na série como um jovem cheio de esperança, otimista, sonhador, simpático e com uma pureza de coração cativante. E ele é muito bem acompanhado por Nonso Anozie, que faz de seu Jepperd um personagem brutalizado pela vida que – ao contrário da HQ – desde o início parece ter um bom coração, apesar de tentar se mostrar insensível, no início, ao drama de Gus.
Com tantas adaptações de quadrinhos para o cinema e televisão, é normal que tenhamos uma ou outra produção que derrape feio na hora da transposição entre mídias. Ainda bem que “Sweet Tooth”, uma das melhores HQs dos últimos 15 anos (e que acabou de ganhar uma continuação lá fora), não sofre desse mal em sua primeira temporada.
Aproveite, aliás, e leia a série em quadrinhos, que a Panini republicou em uma edição especial. É daquelas histórias capazes de fazer o leitor chorar de soluçar com o seu final, uma das coisas mais belas já criadas quando falamos de histórias em quadrinhos. Prepare-se para sentir um nó apertado no coração, e ainda ficar feliz com isso.
Vida longa e próspera. E obrigado pelos peixes.
P.S.: Não esqueça de seguir a playlist da coluna, tem no Spotify e Deezer.