Oi, gente.
Nick Cave é meu pastor das trevas, e nada me faltará. Mas calma, ah migo e ah miga ou pessoas que caíram por acidente nesta página: as trevas, no caso, são aquelas que carregamos conosco e que o australiano sempre retratou tão bem em suas canções. Desde o Birthday Party, passando pelos Bad Seeds e o projeto Grinderman, Nick Cave sempre cantou sobre Deus, fé, religião, solidão, desespero, o demônio (literal ou pessoal), criaturas estranhas, morte, pecado, crime, assassinato, mas também sobre amor. E “Carnage”, seu mais recente álbum, reúne vários desses temas em oito belíssimas músicas.
O trabalho, lançado de surpresa em 25 de fevereiro, não tem o acompanhamento dos Bad Seeds velhos de guerra: é creditado como a primeira parceria entre Nick Cave e o violinista Warren Ellis, seu companheiro de banda e com quem já havia composto várias trilhas sonoras. O álbum é fruto do período de isolamento provocado pela pandemia, em que o cantor e compositor australiano não tinha muito o que fazer além de escrever, escrever e escrever – entrementes, gravou o igualmente belo “Idiot prayer”, em que revisita sua carreira numa apresentação solitária ao piano, e “Litany”, ópera de câmara em que trabalhou com Nicholas Lens.
Mas voltemos a “Carnage”. Escrevendo como se não houvesse amanhã, Nick Cave chamou Warren Ellis para transformar essa torrente de criatividade em canções. Nas primeiras audições, o fã pode até encontrar paralelos com “Ghosteen”, “The boatman’s call” ou as trilhas sonoras de Cave e Ellis, mas aos poucos dá para perceber que o álbum tem personalidade própria ao passear por várias fases da carreira do cantor com suas baladas e litanias, porém uma sonoridade etérea, experimental em alguns momentos, e enveredando até pelo gospel.
O resultado é um álbum sombrio, apocalíptico, brutal, mas ao mesmo tempo repleto de esperança, espiritualidade, desejo de absolvição e amor – contradição é com ele mesmo. As letras de Nick Cave tratam de sofrimento, um reino dos céus impossível, confinamento, natureza, encruzilhadas, um Deus indiferente à dor de suas criações, mudança, mas, ao final, há redenção e amor, amor, amor e mais amor. Faixas como “Balcony man”, “Hand of God” e o coral gospel de “White Elephant” são de fazer o ouvinte ter aquela sensação de arrebatamento musical que só os grandes artistas são capazes de proporcionar. E Nick Cave, nosso pastor das trevas, é um dos poucos nomes da música contemporânea capazes disso.
Descobrir que Nick Cave lançou novo álbum já é motivo de alegria, agora imagine descobrir na mesma semana que também temos um novo trabalho dos Tindersticks, aquela banda inglesa que ninguém parece conhecer, apenas este que vos escreve. O grupo liderado por Stuart Staples lançou mês passado seu 13º álbum, “Distractions”, algo diferente do que estou (estamos? Duvido) acostumado a ouvir do grupo nessa longa estrada da vida. Como o disco foi gravado numa breve janela da pandemia, em que foi possível reunir seus integrantes, talvez a explicação esteja aí.
A primeira faixa, “Man alone (Can’t stop the fadin’)”, surpreende pelas batidas eletrônicas e outros elementos alienígenas à sonoridade dos Tindersticks em seus 11 minutos de duração. O estranhamento inicial prossegue com a espectral e sussurrada “I imagine you”, mas quem disse que a gente não gosta? Na sequência, a banda manda ver em três belíssimas covers: “A man needs a maid”, de Neil Young; “Lady with the braid”, de Dory Previn; e “You’ll have to scream louder”, do Television Personalities.
Com apenas sete faixas em 46 minutos, “Distractions” ainda entrega para o(s) fã(s) “Tue-Moi”, em que Stuart Staples canta em francês para homenagear a boate Bataclan, palco da maior carnificina dos terríveis atentados em Paris, em 2015; e os nove minutos de outra bela canção, “The bough bends”, que encerra o álbum com a sensação de que poderíamos passar horas e horas ouvindo o que a banda tem a oferecer de material inédito.
Para quem está acostumado a canções como “Dying slowly” e “(Tonight) Are you trying to fall in love again”, “Distractions” deixa a pista de que o Tindersticks pode estar de olho em novas direções musicais; se assim for, elas serão mais que bem-vindas.
Vida longa e próspera. E obrigado pelos peixes.
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