A poeira laranjada pesou sobre o asfalto quente. Abafou o ar com o sol forte que sucedeu a noite de tempestade. Na parede do velho galpão, fez uma marca que ainda impressiona a quem passa. Era noite quando a chuva ficou mais forte. As ruas, por algumas horas, se tornaram rios, com correnteza e força.
A enxurrada forte impediu que muitos motoristas seguissem. Logo, havia uma fila de espera com carros, ônibus e motocicletas, que preferiram se manter em um local seguro. Houve também quem optou pela imprudência e se lançou na dúvida, apesar dos muitos avisos de todos que aguardavam.
Tem gente que se deixa enganar facilmente pela água, subestima a força que ela tem. Quando ela quer, nada é capaz de contê-la. Ela apenas flui, teimosamente, levando consigo tudo o que vê pela frente, sem perdoar imperícias. A água deve ser respeitada.
Mas naquele momento não aconteceu. Dois carros ficaram boiando. É aí que uma outra figura muito impressionante entra em ação. Ignorando qualquer risco, chega a solidariedade. Ela fez com que os motoqueiros enfrentassem a enxurrada, para ver se havia algum risco para quem escolheu a imperícia. Apesar do susto, estava todo mundo bem. Mas a solidariedade permaneceu ali, na figura de pessoas que se juntaram para ajudar um rapaz que estava com problemas em fazer sua moto funcionar.
No dia seguinte, depois que as águas baixaram, da mesma janela, em uma situação muito distinta, a solidariedade voltou a aparecer. Dois garotos sentados na beirada do passeio tiravam roupas e calçados de uma sacola, eles estavam animadíssimos, muito agradecidos. Quando percebi, eram dois outros garotos, que imagino ter idades próximas às deles, eles tinham feito a doação. Perguntavam quanto os outros dois calçavam, porque poderiam destinar outros itens, caso eles aceitassem.
Pouco depois, uma mulher chegou, pelos traços, penso que seja a mãe de um dos meninos. Ela disse que levaria os garotos e as sacolas de doações até a casa deles. Da janela, depois dos gestos, não tivemos como não ficar emocionados.
O mundo pode estar um caos. Tudo pode estar fora do lugar. Mas sabemos que algo ainda pode dar certo, quando a solidariedade, essa personagem sem rosto, ainda consegue tocar as pessoas de alguma forma. Não sei o nome de todos os envolvidos nessas histórias, mas aprendi que o que se faz com uma mão, a outra não precisa saber. Basta que o gesto ocorra, que inspire e se replique.