Dia desses fui surpreendido por um abraço. Digo surpreendido, porque há abraços que são anunciados, outros que são esperados. Aquele, no entanto, não fazia parte de nenhum desses dois grupos. Considero o abraço uma das maiores e mais bonitas expressões de afeto. O enlace de braços ao redor do corpo do outro, que envolve, acolhe, protege, acalma e deixa feliz. Pelo que tenho visto e vivido, percebo que estamos cada vez mais carentes desse tipo de contato e, mesmo com a surpresa, abraço não se recusa, a menos que não seja uma oferta sincera de carinho. O que não era o caso.
O abraço que recebi tinha certa urgência. Ele precisava acontecer rápido e não podia esperar, também não tinha como ser em outro momento. Seria difícil enumerar as várias notícias difíceis com as quais estamos lidando desde o início do ano. Mas o que me recordou esse abraço foi, especificamente, o rompimento da barragem no município de Pedro Alexandre, na Bahia, porque me conectou diretamente ao horror de ver o rio de lama que matou um número absurdo de pessoas em Brumadinho, aqui em Minas.
Além de Brumadinho, de cabeça, me lembro da morte de Ricardo Boechat em condições tão improváveis, do assassinato de Pedro Henrique Gonzaga, a morte de Jenifer Gomes com um tiro no peito, as consequências das chuvas fortes que atingiram o Rio de Janeiro, que deixaram mortos e famílias desalojadas, João Gilberto, Paulo Henrique Amorim, o músico Evaldo dos Santos Rosa executado com 80 tiros, localmente, o amigo de imprensa, Cebola, e vou parando por aqui, embora ainda existam muitas outras que poderiam ser citadas e que tenham causado, em nós, uma certa apreensão, dor ou desesperança.
Tive problemas para dormir na sexta-feira do dia 25 de janeiro. Há algum tempo, eu planejava conhecer Inhotim. Não tinha dado ainda. Sempre acontecia algo, e eu tinha que deixar os meus planos para lá. Nesse ano, contudo, tinha dado como certa minha ida a Brumadinho nas férias. Terminado o expediente, voltava para casa, quando recebi a notícia estarrecido. Me senti inundado por uma perplexidade pungente.
O nome do estado nos avisa que a atividade está presente por todos os cantos, mas a memória cristaliza tantas outras referências, que essa vai sendo deixada em um ponto distante, esquecido. Embora consigamos fazer o link facilmente entre a dor de Mariana e a dor de Brumadinho, o que fica é a sensação de que não aprendemos nada com tudo o que aconteceu. Pensava no trajeto o quanto perdemos. Vidas, famílias, ecossistema, memória, paz. O que permanece depois de tudo isso é o estado de alerta. O mesmo que motivou o abraço que eu recebi.
No grupo em que estava quando recebi o abraço, cada uma dessas notícias que citei foram comentadas e ainda muitas outras. Dividimos pensamentos, impressões, angústias, preocupações. Vários pontos de vista, muitas vezes, conflitantes, sobre cada uma dessas situações. A segunda-feira, depois daquela sexta, foi silenciosa, pesada, densa. Ninguém queria falar muito. Interromper aquele estado parecia falta de respeito. Sendo no mesmo Estado, o sentimento que havia era o de que a tragédia ocorreu em um bairro vizinho, gente próxima.
Em dado momento, uma das presentes disse: “Eu não sei o que vai acontecer comigo amanhã. Sendo assim, eu não posso perder a oportunidade de dar um abraço em vocês. Eu me comovi muito com os pais, filhos, irmãos que não puderam dar seu último abraço, nem dizer o que tinham vontade, enquanto estavam vivos. Posso abraçar vocês?”.
Ainda que eu pudesse pensar muitas coisas a respeito desse pedido e embora eu reconheça que essa pessoa demonstre um grande carinho pelo grupo diariamente, esse abraço, de alguma forma me deixou, ao mesmo tempo, mais forte e mais fraco.
A vida é mesmo um sopro. Precisa ser celebrada, cultivada e vivida com a intensidade que for viável e suportável. Os afetos precisam ser reconhecidos e alimentados, enquanto é possível entregá-los. Mas, ao mesmo tempo, havia naquele abraço algo pesado, que não havíamos compartilhado até então e me parecia tudo confuso demais para se transformar em verbo. Nos desvencilhamos sem mais nenhuma palavra e fomos com todas as nossas complexidades, cada um para o seu rumo.
Ainda não sei, e acredito que nem vá saber um dia, que efeitos esses abraços produziram na minha interlocutora. Mas eu espero que ela tenha ficado, ao menos, um pouco melhor depois deles. Há abraços que curam. Esses, que esqueci de mencionar lá no início, são os mais importantes. Eles aquietam a dor, silenciam as dificuldades e afastam os pensamentos ruins. Não foi o caso, mas eu gostaria que fosse. Mais que isso. Gostaria que Brumadinho, Quati, Mariana e toda as populações afetadas por esses desastres fossem acolhidas por esse tipo de abraço.
Se tem algo que eu espero daqui em diante, na seara do nosso comportamento, é que todos tenhamos em nossas contas mais demonstrações de afeto genuínas, despretensiosas e espontâneas, que nasçam de nossa satisfação de estar com os outros. Que a gente se abrace pela simples vontade de abraçar. Que não seja necessário esperar pela própria tragédia, para que essa urgência surja e nos tome. Que tenhamos Brumadinho, Mariana, Quati, Evaldo, Cebola, Pedro, Jenifer, Ricardo, Paulo, João e todos os outros muito vivos em nossas memórias e que consigamos atribuir cada vez mais valor às trocas que fazemos todos os dias.