Um senhor passa todos os dias em frente à esquina de casa, religiosamente, entre 20h30 e 21h. Montado em sua companheira de jornada, uma bicicleta de modelo bem antigo, ele repete um ritual. Faz o sinal da cruz sem parar, enquanto se equilibra em cima do banco do veículo. Segue seu trajeto lento e repetitivo. Dia após dia. Pedala como quem está, constantemente, com receio da iminente aparição de uma alma penada.
De longe, quem vê tenta adivinhar o que passa na cabeça daquele homem. Se o que ele sente é medo ou se vê alguma outra coisa que as demais pessoas não conseguem enxergar. Mas a impressão que dá é a de que se tem algo ali, boa não é. Se fixamos o olhar nas árvores que ficam na beirada do meio fio, elas parecem ter expressões distorcidas. Como quem tenta soprar um conselho baixinho, quase inaudível, para quem vai encarar um leão na arena.
O avô sempre falava que era importante ficar em casa em agosto. “É mês do cachorro louco”, dizia. Toda vez que nos lembrava disso, vinha com uma história sobre algo muito fora do habitual ou algum acontecimento misterioso que tenha atingido algum morador do bairro. O que despertava mais curiosidade do que medo, na verdade. Ficávamos lá, de olhos arregalados, até ele finalizar o relato. É em agosto que essa sensação fica mais forte, por motivos que nenhum de nós consegue explicar direito.
No entanto, o que arrepiava o pelo da nuca da família de verdade era um quadro que ficava pendurado na sala da casa do vô: um retrato da avó dele, com uma correntinha que aparecia e desaparecia quando o bicho estava pegando. O ‘termômetro espiritual’ não falhava. Pesou a barra, a tal da corrente ia ficando apagada, até sumir. Até que alguém teve a ideia de sumir com a tela. Os mais novos conhecem a lenda só de boca, mas se perguntarem, ninguém vai querer topar com a pintura por aí. A história da corrente é longa e anterior ao quadro. Coisa de deixar atônito até mesmo os mais céticos.
Sempre que me esqueço, lembro o que é o medo de verdade olhando pela janela. Cinco minutos basta. É suficiente para que gente de carne, osso e muito viva apronte poucas e boas. Tem um cara empinando a moto no limite, tem entrada de veículo na contramão o tempo todo, tem gente prestando mais atenção no celular que no volante. Tem gente inabilitada na direção, tem gente assumindo o risco de travessar a rua no meio do trânsito de maneira imprudente e também tem gente que não sabe usar a seta.
Nessa rua de medos visíveis e invisíveis também mora um anjo. Ele é discreto e é o responsável por evitar milhares de atropelamentos, colisões e outros sinistros. As pessoas se esquecem de agradecer. O guerreiro angelical tem uma carga de trabalho extenuante (Me pergunto se os anjos se cansam). Nutre um apreço comovente por crianças, idosos, animais e bêbados. Está sempre atento a cada situação que possa gerar risco. É proteção na qual se confia mesmo sem contato visual.
Medo eu tenho de quando o guardião alado tira sua merecida folga. As poucas vezes que aconteceram coisas realmente estranhas, desastrosas e tristes.
De todos os agostos que passaram, esse foi o mais esquisito. Não houve nenhum acidente. Mas o ar esteve pesado, embora o céu estivesse aberto na maior parte do tempo. O avô apareceu bravo em sonho. Coisas estranhas passaram a acontecer em muitos âmbitos muito diferentes. Mas a gente, por aqui, reza pelo anjo. Os alarmes continuam soando em horários impróprios. As derrapadas seguem sobressaltando o coração. Os cachorros latem para o nada. Eu prefiro imaginar que seja o anjo, que está continuamente em ação. Portanto, as coisas que nossa vã filosofia ainda não consegue explicar, permanecem causando sustos entre o céu e a terra. A diferença é que, antes, elas eram extraordinárias. Agora, são tantas e tão frequentes que nem causam mais tanto alvoroço.