Daqui a duas semanas, completaremos dois anos imersos na pandemia de Covid-19. Foram incontáveis notícias ruins ao longo desse período. Cheguei a imaginar que faltaria assunto, mas me surpreendi com a quantidade de acontecimentos que preencheram as páginas do jornal nesse tempo. Tudo o que não precisávamos, nessa altura da prosa, era de uma guerra.
Batemos a inaceitável marca de 650 mil mortes brasileiras causadas pelo vírus no país, maior do que a população de Juiz de Fora, estimada em mais de 577 mil pessoas, conforme os dados do Instituto Brasileiro de Geografia Estatística (IBGE). No mundo, são quase 6 milhões de vítimas fatais, de acordo com a Our World in Data.
Enquanto aguardamos o arrefecimento do número de óbitos, contágios e de internações pelo coronavírus e suas variantes, acompanhamos estarrecidos as informações e imagens que chegam sobre o conflito na Ucrânia. Três coisas me tocaram muito sobre essa situação nessa semana.
A primeira, foi a reação do tradutor do discurso do presidente ucraniano Volodymyr Zelensky, durante videoconferência com o parlamento europeu. Não há como ficar indiferente ao sofrimento das pessoas, e a reação dele deixou isso absolutamente claro. Principalmente quando ele diz: “Queremos nossas crianças vivas.”
A segunda situação que me deixou completamente tocado foi a entrevista de um homem, que buscava sair da capital ucraniana, passando de imigrante a refugiado de guerra. Ao jornalista Rodrigo Carvalho, Ibrahim disse que não contou aos dois filhos pequenos o que estava acontecendo. Disse que eles estavam em uma viagem, pintando tudo o que está acontecendo diante deles com cores de aventura, embora saiba que, uma hora ou outra, os dois acabarão entendendo que estão em meio a um conflito.
O mecanismo usado por aquele pai lembra imediatamente o enredo do filme “A vida é bela”. No longa, Guido é levado com o filho Joshua para um campo de concentração, onde decide simular um jogo, para que o filho não perceba os horrores que aconteciam no local, fazendo o que podia para preservar o garoto da brutalidade extrema a qual estava exposto. A obra é sensível ao mostrar a doação do pai, que buscava perceber o que havia de humano em meio ao cúmulo da perversidade.
O terceiro ponto é a perplexidade diante do racismo e da discriminação que se colocam como mais um muro diante de imigrantes negros e latinos que se esforçam para sair da região do conflito. É estarrecedor constatar que ainda estamos tão distantes de resolver nossas maiores questões. Os abismos que separam a nossa sociedade da equidade e da democracia permanecem crescendo diante dos nossos olhos cansados.
A vida deveria ter mais valor, deveria ser mais respeitada, protegida antes de qualquer outra coisa. Com os recursos que desenvolvemos, com as tecnologias que temos, é difícil aceitar que ainda perdemos vidas por tão pouco. A vida nunca deixou de ser bela, mas nós falhamos quando permitimos que ela fique em segundo plano, independente do motivo que a coloque em risco.
Todos e tudo o que perdemos nesses dois anos tornam o prejuízo incalculável. Cultivar a esperança em terra arrasada é uma capacidade rara, que só consegue ter sucesso quando conseguimos despertar a consciência coletiva. Mas é ouvindo as palavras de Ibrahim e lendo a coragem no semblante dele, que eu vejo que temos que alimentar nossas forças com a sede de vida que temos. A vida continua bela e temos que lutar por ela.