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Mortos-vivos

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Mauro Morais, repórter do Caderno 2 da Tribuna, tem um hábito que me anima: ele gosta de compartilhar suas impressões sobre os livros que está lendo. E isso acaba permitindo que a gente discuta questões que consideramos essenciais sobre a vida, principalmente sobre o processo da nossa desumanização.

Recentemente, conversamos a respeito do livro de Svetlana Aleksiévitch – “A guerra não tem rosto de mulher”. Nele, a jornalista bielorrussa que ganhou o prêmio Nobel de Literatura fala sobre mais de um milhão de mulheres que lutaram na 2ª Guerra Mundial pelo lado soviético. Svetlana relata todo o processo de endurecimento pelo qual as personagens passaram ao ser submetidas a insanidade de um campo de batalha.

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Em um dos trechos da obra de não ficção, alemães e seus cães farejadores rondam uma área molhada onde um grupo de soviéticos se escondia. Uma jovem mãe que pariu um bebê em meio à guerra estava no local. Sob forte estresse, ela não conseguiu produzir leite. Por isso, seu bebê chorava de fome dia e noite. Na iminência de ela e a tropa serem descobertas pelos alemães, a mãe que tinha o peito estéril também não conseguiu fazer o filho calar e acabou por afogá-lo no lamaçal. Destroçada pela dor, ela não pôde chorar. Não tinha lágrima. Manteve o pequeno cadáver junto dela por horas. Assim como ela, muitas jovens saíram ocas da guerra. Cada uma delas teve subtraída a capacidade de sentir.

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Mais de 70 anos depois do fim da 2ª Guerra, o cenário pode ter mudado, mas a brutalidade do nosso cotidiano continua roubando de nós sentimentos básicos, como o da compaixão. Anestesiados pela guerra urbana que diariamente testemunhamos, não somos mais capazes de nos colocar no lugar do outro. Aliás, aceitamos o aniquilamento de indivíduos cujas vidas julgamos não ter significado. A quem importa? Muitos darão de ombros e ainda vão comemorar o fato de ser menos um. Um ou milhares?

Os irmãos Lucas, 17 anos, e Elias, 19, assassinados esta semana no Bairro Vila Ozanan, Zona Sudeste de Juiz de Fora, acabam de engrossar a estatística da violência que parece não ter classe, mas que dizima negros e pobres em escala geométrica. No flagrante do fotógrafo Olavo Prazeres, tudo parecia ser comum. A impotência da comunidade diante de uma realidade que se repete entre abandonados sociais, a motivação banal do crime, o choro isolado da mãe. Mas Olavinho conseguiu captar o extraordinário: o abraço dos irmãos no instante da morte. Enlaçados, um buscou proteger-se junto ao outro. Alguns leitores protestaram por causa da publicação da imagem na edição do jornal da última sexta-feira, afinal eles foram obrigados a ver o que insistem em ignorar.

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Através de suas lentes, no entanto, Olavo nos obriga a enxergar o óbvio: é urgente reencontrarmos a nossa humanidade. Os anestesiados pela indiferença ainda não se deram conta que, assim como aquela jovem mãe soviética, estão mais mortos do que vivos.

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