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Somos mais tailandeses do que gostaríamos

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A busca permanente pelo embranquecimento é uma das realidades mais cruéis do continente asiático. Na Tailândia, há uma infinidade de cosméticos para mulheres que perseguem o clareamento da pele como padrão de beleza e sucesso. Recentemente, uma campanha publicitária elevou ao nível máximo o discurso racista que há décadas domina o mercado da beleza e a vida cotidiana daquele país, incitando, inclusive, o uso de maquiagem branca. Na polêmica propaganda veiculada na TV sobre um desses produtos, uma conhecida atriz dos tailandeses exibiu sua pele de porcelana e disse que, “para chegar lá”, precisou dedicar muito tempo à sua “brancura”. Durante sua fala, uma outra modelo vai ficando cada vez mais pálida, enquanto a famosa vai se tornando negra. Ao final, pode-se ler: “Você só precisa ser branca para vencer”.

Muitos de nós, ao lermos isso, vamos engrossar o coro puxado pelo blogueiro inglês Richard Barrow que publicou nas redes sociais toda sua indignação contra a campanha, classificando-a de a mais racista que já viu. Na teoria, estamos todos com Barrow, mas a prática mostra que somos mais tailandeses do que gostaríamos.

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Na semana passada, uma estudante brasileira que disputou uma vaga no curso de Letras da UFMG usou o Facebook para “desabafar”. “Para o curso de Letras na UFMG, há 260 vagas. Fiquei na posição 239. Mas não vou entrar por quê? Por causa dessa merda de cota”, comentou a jovem, que continuou seus xingamentos e terminou o post dizendo em letras garrafais: DESGRAÇA.

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Lorena Cristina de Oliveira Barbosa, uma das estudantes aprovadas no mesmo curso através do sistema de cotas, rebateu. “Sou uma preta lacradora, inteligente e cotista que entrou em Letras no seu lugar”, respondeu, usando o mesmo tom de agressividade. Quando o furacão de mensagens igualmente racistas passou pela vida de Lorena, ela voltou ao Facebook para falar sobre o episódio:

“Não acreditei que passaria na universidade federal. Não com a deficiência no processo de ensino básico que eu tive. No ensino fundamental, estudei em uma escola periférica à beira de um córrego, localização geográfica que nos deixava meses sem aula em função dos animais peçonhentos que invadiam nossos bebedouros e cantinas. No ensino médio, fui para uma escola que sempre alagava na época de chuva. (…) Quando me formei, entrei para uma graduação numa faculdade particular. Era bolsista. No quarto período, resolvi tentar mudar de curso e ir para a federal. Trabalhava durante o dia para estudar a noite. (…) Virei noites sem dormir. Estudei aos finais de semana com uma amiga que se dispôs a me ajudar. Quando saiu a nota da redação, quase não acreditei. Tinha tirado 920, e as minhas médias tinham sido suficientes para encher o meu coração de esperança. No dia 18, tive a confirmação de que havia sido selecionada para cursar a UFMG. Sendo assim, vou estudar ao lado de brancos e burgueses que sempre gozaram de todos os privilégios sociais que eu nunca tive. Estudei para estar ali. Cota é o mínimo de reparo social que o governo me deve por ter me feito receber os piores ensinos e estruturas escolares só por ter nascido preta e pobre”, escreveu.

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Lendo a mensagem de Lorena, me lembrei de Argemiro Silva Pires, um dos personagens de uma reportagem especial que fiz em 2014 sobre o destino dos primeiros cotistas da UFJF. A matéria fazia uma radiografia sobre o sistema de cotas dez anos após sua implantação. Confesso que eu não tinha uma opinião formada em relação ao tema e nem estou aqui para levantar bandeiras sobre isso, mas quando conheci Argemiro, entendi exatamente o que alguém sente quando seu coração “se enche de esperança”, como Lorena disse.

Aprovado para o curso de Administração da UFJF, em 2004, Argemiro nunca tinha pisado no campus da universidade até o primeiro dia de aula. Aliás, o morador do Bairro Santo Antônio nem sabia que existia um. Aluno de escola pública municipal e estadual, ele só ouviu falar sobre o vestibular na entidade filantrópica que o acolheu no contra-turno escolar. Calouro da UFJF, ele era o único negro da sua turma em uma universidade que, à época, era composta por 80% de brancos. Sem dinheiro para pegar ônibus, fazia a pé o trajeto de casa até a faculdade, gastando quatro horas diárias para estudar. Na entrevista que fiz com ele na casa simples e inacabada onde morava, Argemiro me disse que, no começo, tinha vergonha da sua condição social e de estar em um mundo no qual ele não encontrava um lugar seu. “Eu pensava que não podia frequentar o mundo deles, que havia um lugar reservado na sociedade para cada um: pobres e ricos.”

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Único da sua família a cursar o ensino superior, Argemiro tornou-se referência no bairro onde ele viu vários amigos jovens serem assassinados pela violência e pelo tráfico. Ao entrar para a universidade, rompeu as correntes que o prendiam ao perverso ciclo da exclusão. Formado, está construindo uma história diferente para ele e os que vierem depois.

Olhando para essas duas histórias, penso que os seus protagonistas são sobreviventes de um mundo que não separa mais os bebedouros públicos pela cor da pele, mas ainda destina os melhores espaços para os brancos. Argemiro e Lorena, no entanto, já provaram que, na nova sociedade que eles estão ajudando a construir, não haverá mais lugares marcados, porque nela os assentos serão livres.

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