Na semana em que se comemorou o Dia Nacional da Luta Antimanicomial, tive uma conversa surpreendente com o ex-deputado Paulo Delgado, autor da lei, sancionada em 2001, que regulou as internações psiquiátricas no Brasil, promovendo mudanças no modelo assistencial. Meu último contato com ele havia sido em 2012, quando eu reunia documentos para publicação do livro Holocausto brasileiro. De lá para cá, não nos vimos mais. O reencontro se deu justamente no dia da reabertura do Museu da Loucura em Barbacena, que estava fechado desde 2014. Ali, em meio aos fragmentos de um passado trágico que fez 60 mil vítimas no hospital Colônia, conversamos sobre o impacto da lei na saúde mental e na vida pessoal do político. Taxado de deputado dos loucos, à época, o sociólogo pagou caro para libertar pacientes psiquiátricos das amarras dos manicômios. Comprou briga com poderosos donos de hospitais que fizeram do doente mental um cheque ao portador, enriquecendo às custas da miséria humana e de um tratamento desumano para os considerados privados de razão. Ao propor modelos de atendimento que respeitassem o sujeito e dessem a ele uma chance real de viver em sociedade, os papas da razão protestaram. Os “donos” dos doentes não admitiam que um estrangeiro legislasse no terreno médico. Muitas famílias também reagiram, algumas por não ter condições financeiras de cuidar do seu parente, outras por já ter se acostumado com a sensação de alívio de ver longe alguém que causa enorme incômodo. Por não ser um dispositivo de poder, mas uma nova forma de enxergar o outro, a lei pegou, ainda que contra tudo e contra todos. E não foram poucos os que disseram que cada doente mental encontrado perambulando nas ruas seria responsabilidade de Paulo Delgado. Falsos samaritanos, os dotados de razão não estão preocupados com o destino dos doentes mentais, mas com a limpeza social de seu próprio território que só pode ser bonito se for livre de mazelas. – Enfrentar o preconceito me fez permanecer cada vez mais na luta. A dor dos pacientes é muito maior do que o sofrimento que outras pessoas possam vir a ter, confidenciou Delgado no balanço que fez desses últimos 15 anos. Sobre a mudança de rumo para os antigos prisioneiros dos homens de razão, sigo a reflexão de Jorge Nahas, atual presidente da Fhemig. Para Nahas, o processo de reconhecer-se na loucura do outro foi demorado, assim como o de compreender que todos são feitos de uma mesma matéria e, por isso mesmo, têm direito à preservação da individualidade e ao cuidado, ainda que loucos. Tornar cada um igual a todos é uma boa medida de justiça. Em tese, ninguém deveria ter privilégios, a não ser que estes se estendessem à coletividade. A garantia de direitos é, nas palavras do próprio Nahas, um caminho em construção. O que surpreende na busca de aperfeiçoamento das regras de convivência e dos estatutos legais é perceber que a humanidade tem desenvolvido permanentes mecanismos de defesa para proteger o homem de si mesmo.